São Paulo, terça-feira, 18 de dezembro de 2001

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ARTES PLÁSTICAS

Artista carioca expõe no Centro Hélio Oiticica, no Rio, três instalações e uma sala de esculturas inéditas

Lygia Pape exibe coleta de astros poéticos

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
A artista carioca Lygia Pape na sala que exibe seus "livros", esculturas brancas nas quais aplica palavras, no Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro


CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

O físico e ensaísta Mário Schenberg (1914-1990) mudou o modo de encarar as ciências no Brasil ao dizer que era movido por "inspirações matemáticas". Injetava a intuição no que se convenciona resolver apenas com razão.
Lygia Pape fez algo semelhante nas artes plásticas brasileiras. Diante de um cenário artístico marcado por formas geométricas dos primeiros nomes do concretismo, a artista carioca ajudou, acompanhada de nomes como Lygia Clark e Hélio Oiticica (os neoconcretos), a enfatizar os sentidos e a buscar uma interação maior do espectador com a arte e da arte com a vida.
Espécie de primeira-dama do que a arte brasileira produz atualmente, sem qualquer um dos oficialatos que "cargos" como esse permitiriam, Pape nunca deixou de avançar. Se Schenberg se orientou no céu das "inspirações matemáticas", a artista vem se deixando guiar pelas estrelas da "inspiração poética" desde o início dos anos 60.
Aos 72 anos, ela traz ao público mais uma coleta feita nesse universo de astros poéticos. A artista, que expôs este ano em Washington, Oxford, Londres e Porto e que tem obras atualmente no Guggenheim de Nova York, abriu exposição no final da semana passada no Centro de Arte Hélio Oiticica (r. Luis de Camões, 68, tel. 0/ xx/21/2232-4213), no Rio.
São três grandes instalações e uma sala de esculturas, tudo novo, tudo inédito. Em "Carandiru", a artista mostra "o que foi aquele massacre: uma cachoeira de sangue". Na primeira sala, estão projetados desenhos de índios tupinambá e fotografias de presos. Na segunda, uma grande cachoeira de água vermelha cai em um recipiente no formato de um manto como o usado pelos tupinambás.
"Os dois, presos e índios, têm a mesma vitalidade em ferocidade. Um grupo já foi exterminado há tempos, o outro está sendo dizimado sistematicamente."
No andar de cima, está a instalação "New House". "É minha forma de ironizar a arquitetura. Destruo uma sala inteira para mostrar a minha idéia de nova habitação. Não se pode nem entrar nessa casa. São duas portas meio derrubadas que dão para um cenário de demolição."
Na sala do meio, está mais uma fornada de "livros", nome que Pape usa para diversos modelos de escultura que de alguma forma estão relacionadas com a palavra.
Em meio à montagem, Lygia Pape, emprestou a voz firme que sai de seu corpo frágil para falar sobre passado, presente e futuro de sua criação artística. Leia alguns trechos da entrevista.

Folha - Você já experimentou desde pintura e desenho até instalação, design, escultura, vídeo. Existe algo que ainda não foi feito?
Lygia Pape -
Já experimentei de tudo, mas não porque quisesse ocupar todos os espaços. Cada expressão pede uma linguagem diferente. Cada vez uso outra língua porque minha arte anda pra frente. Não gosto de fazer retrospectivas. É muito tedioso mostrar coisas que já foram feitas.

Folha - Qual sua opinião sobre o fato de que seu trabalho sempre vem acompanhado da expressão "artista neoconcreta", sendo que esse grupo terminou nos anos 60?
Pape -
Acho um pouco supérfluo. Durante o período de surgimento do grupo, tudo bem. Hoje não tem o menor cabimento. Você pode dizer que Lygia Pape pertenceu historicamente ao grupo. A Lygia Clark e o Oiticica, que já morreram, também não devem ser chamados de neoconcretos. Não sou uma artista neoconcreta. Passei por isso, mas acabou.

Folha - Sua obra muitas vezes convidou o público a participar. Por que não existe mais essa característica no seu trabalho?
Pape -
Nunca foi programado. Naquele momentos, a poética que me interessava tinha essa relação participativa. São intuições poéticas, como as "intuições matemáticas" que Schenberg dizia ter.

Folha - Como você consegue manter sua obra "sempre em movimento" depois de tantas águas corridas? Como manter a vitalidade?
Pape -
É que não trabalho sistematicamente. Faço uma ou outra exposição. Este ano trabalhei mais, porque tive muitos convites. Como leio muito e gosto de ver obras de outros artistas, vou acumulando informações e desejos. Quando aparece um convite que me atrai, desenvolvo as idéias que estavam por aí em mim.

Folha - Você já se disse "intrinsicamente anarquista". Por quê?
Pape -
Sou anarquista, sim, porque sou contra o poder, as coisas institucionalizadas. Não tenho nem televisão na minha casa. Acho os programas absolutamente idiotas. Também sou anarquista porque acredito no homem como individualidade e não cercado por todos esses poderes que limitam a criatividade. Me sinto péssima politicamente porque tudo o que acontece aqui é da pior espécie. Mesmo o governo da Marta.

Folha - Seus trabalhos nunca foram muito políticos, no sentido mais simples do termo. Por quê? Pape - Trabalhar as conquistas sociais para ganhar prestígio político não me interessa. Acho abominável. Não é mais o ato poético da criação. Não que eu seja alienada. Dou até aula na universidade.

Folha - O que a sra. pensa da arte contemporânea brasileira?
Pape -
É excelente. Finalmente a história universal descobriu a arte brasileira. Havia preconceitos muito grandes. O mercado hoje é um propulsor. Como ele precisa de "carne fresca", começaram a perceber que havia obras de grande qualidade por aqui.

Folha - Mas seu trabalho, o de Oiticica e da Lygia Clark tiveram alguma projeção no exterior?
Pape -
Ah sim, principalmente os da Lygia e do Hélio, que tiveram uma circulação boa. Mas há artistas jovens que também estão circulando muito bem, como o Ernesto Neto, por exemplo, um artista de quem gosto muito.

Folha - Como será a arte do futuro. O que mudará na arte depois de 11 de setembro?
Pape -
Acho que sempre houve hecatombes pelo mundo afora. Agora elas são mais tecnológicas. Sempre houve grandes guerras, destruições, cataclismas. Os artistas sempre criaram paralelamente. Como se tivessem uma vida paralela. O tempo de Leonardo da Vinci, por exemplo, também era conturbado. Hoje temos só mais ciência, então a tragédia é mais cinematográfica. O artista é bastante premonitório. Seurat, por exemplo, fez uma pintura toda de pontinhos. Ele apontava dentro da obra dele o surgimento da televisão, que é a fragmentação dos pontos luminosos para criar a imagem. Acredito no que dizia Ezra Pound, que o artista é a antena da raça. É quem marca e sinaliza o que acontece. Ele não sofre ações, ele aponta as mudanças.


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