São Paulo, quarta-feira, 18 de dezembro de 2002

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POLÍTICA CULTURAL

INCENTIVO FISCAL

"Não vejo como ela possa ser classificada de neoliberal", diz; rótulo foi usado pela equipe de transição

Rouanet defende a lei que leva seu nome

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

De 1996 a 2001, mais de R$ 700 milhões foram investidos em projetos culturais no Brasil com o benefício da Lei Rouanet.
Na condição de principal instrumento federal de política de cultura, a lei -criada em 1991 pelo diplomata, doutor em ciência política e acadêmico Sergio Paulo Rouanet, 68-, sofreu críticas da equipe de transição de Lula (estaria a serviço de um modelo neoliberal) e pode ser revista no futuro governo.
Rouanet foi secretário da Cultura de Fernando Collor de Mello entre 1991 e 1992. Na Presidência de Collor, o Ministério da Cultura foi substituído pela Secretaria.
Hoje, seguro de que pode "contribuir muito mais para a cultura brasileira" como "intelectual independente do que exercendo qualquer cargo burocrático ou político", Rouanet falou à Folha sobre a lei que leva seu nome.

Folha - Relatório da equipe de transição de Lula diz que o governo FHC implantou modelo de gestão neoliberal, sobretudo por meio da Lei Rouanet. O sr. concorda?
Sérgio Paulo Rouanet -
Sei que [o ministro da Cultura Francisco" Weffort se esforçou para aumentar os recursos disponíveis para a cultura e que contribuiu muito para desburocratizar a aplicação da lei de incentivo à cultura.
Quanto à lei, não vejo como ela possa ser classificada como neoliberal. A decisão sobre que projetos podem beneficiar-se dos incentivos não cabe ao mercado, e sim à CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura), órgão colegiado que inclui as principais instituições culturais da sociedade civil, nenhuma das quais tem ligação com a economia.
A lei estabelece os critérios para o enquadramento dos projetos, e todos eles têm a ver com seu mérito do ponto de vista cultural, e não com sua rentabilidade empresarial. Os patrocínios só podem ser buscados depois disso.
Não é o projeto que se subordina ao mercado, é o mercado que se subordina aos critérios culturais que a CNIC exige para a aprovação do projeto.
Em segundo lugar, é importante não perder de vista que a lei inclui o mecenato, mas não se restringe ao mecenato. Por uma razão misteriosa, quando as pessoas se referem à lei, têm a tendência a esquecer que uma de suas partes fundamentais é o Fundo Nacional de Cultura, dinheiro que o MinC tem à sua disposição, e que pode usar livremente para fomentar atividades culturais, sem qualquer participação por parte do mercado.
Os recursos gerados por esse fundo não somente independem do mercado como podem e devem ser usados para financiar precisamente os projetos que não interessam ao mercado.

Folha - Críticos da lei sustentam que seu uso teria sido concentrador no eixo Rio-SP, privilegiaria artistas estabelecidos em detrimento de iniciantes, apoiaria projetos artisticamente conservadores e politicamente acomodados e autorizaria renúncia fiscal em benefício próprio (para institutos culturais associados a instituições financeiras, por exemplo). O sr. concorda?
Rouanet -
A concentração geográfica no eixo Rio-São Paulo é um reflexo da desigual distribuição regional de renda e só pode ser corrigida em caráter definitivo por medidas socioeconômicas mais amplas, que não se limitam a medidas de cunho cultural.
Muito pode ser feito no âmbito cultural. Talvez devesse ser incluída entre os critérios para a aprovação dos projetos sua relevância para Estados e regiões menos desenvolvidas. A composição da CNIC deveria ser mais equilibrada sob o aspecto regional. Os recursos do Fundo Nacional de Cultura deveriam ser administrados de modo a corrigir a tendência à concentração geográfica.
É indispensável que os recursos orçamentários do próprio MinC sejam repassados para as regiões menos desenvolvidas, com base em convênios bilaterais entre o governo federal e os Estados.
A pré-condição para isso é que o orçamento do MinC passe dos níveis atuais [a previsão para 2003 é de R$ 298 milhões" para um patamar menos escandaloso. É obviamente inaceitável que a renúncia fiscal redunde em benefício para institutos culturais associados a instituições financeiras.

Folha - O governo FHC criou a Agência Nacional do Cinema, subordinada à Casa Civil, e reservou ao MinC a gestão de parcela do audiovisual desprovida de viabilidade comercial -caso dos curtas-metragens, por exemplo. O sr. acha correta a instalação de uma agência reguladora? Está de acordo com a definição de cinema industrial e cinema cultural?
Rouanet -
Em princípio, acho pouco produtiva a tentativa de traçar uma fronteira entre cinema como arte e cinema como indústria. Numa economia capitalista, todas as atividades culturais têm sempre uma dupla face, uma em que aparecem como bens culturais, voltadas para o valor de uso, e outra em que aparecem como produtos culturais, como mercadorias, voltadas para o valor de troca.
Deveria caber à mesma instituição levar em conta as duas dimensões do cinema, assegurando por um lado sua viabilidade como indústria e sua competitividade internacional, e por outro, dando os incentivos necessários para os filmes sem vocação comercial.
Por isso o bom senso mandaria que a agência em questão mantivesse seu caráter supra-ministerial, o que permitiria que os dois aspectos fossem considerados de forma integrada.
Mas não estou informado sobre o assunto e por isso mantenho meu espírito aberto.

Folha - A política cultural do governo Lula aponta para o tratamento da cultura como mecanismo de inclusão social. Qual sua opinião sobre a associação das políticas de cultura com práticas assistencialistas e de inclusão social?
Rouanet -
A exclusão cultural é parte de um processo geral de exclusão socioeconômica e só pode ser corrigida no bojo de um programa de inclusão social ampla. Mas isso não significa que a política cultural não tenha uma contribuição importantíssima a dar a esse programa.
Uma política de inclusão cultural pressupõe por definição uma ênfase especial nas necessidades das camadas menos favorecidas. Isso envolve, naturalmente, o fomento à produção cultural popular. Mas implica, também, o favorecimento do acesso de todos à cultura, seja ela popular ou erudita, nacional ou estrangeira.
Uma política que se limite a favorecer a produção cultural erudita é elitista e discriminatória. Mas uma política que ignore a importância de favorecer o acesso popular à grande literatura, nacional e universal, ou à grande música e à grande ópera, é igualmente elitista e discriminatória.

Folha - No livro "As Razões do Iluminismo", o sr. aborda o antielitismo e assinala o equívoco dessa tendência ao desqualificar a cultura superior. Acha que, com o governo Lula, ressurge a tendência pela valorização da cultura popular em oposição à cultura cultivada?
Rouanet -
É importante fazer algumas distinções, que hoje em dia vêm sendo esquecidas. Popular não é sinônimo de popularidade, equívoco muitas vezes cometido por intelectuais que se julgam de esquerda, com um olho em Gramsci e outro no Ibope.
E cultura de massas não é a mesma coisa que cultura popular. É esta que precisa ser protegida, não a primeira. Uma política cultural voltada para a cultura popular -e nenhuma outra é possível, no país monstruosamente desigual em que vivemos- significa duas coisas.
Significa favorecer as manifestações artísticas populares. Mas significa também tirar da marginalidade as populações hoje excluídas dos grandes circuitos da cultura, brasileira e universal.
Não podemos adotar uma política que, embora antielitista na intenção, implica manter num gueto cultural uma população que já vive num gueto socioeconômico.


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