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POLÍTICA CULTURAL
INCENTIVO FISCAL
"Não vejo como ela possa ser classificada de neoliberal", diz; rótulo foi usado pela equipe de transição
Rouanet defende a lei que leva seu nome
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
De 1996 a 2001, mais de R$ 700
milhões foram investidos em projetos culturais no Brasil com o benefício da Lei Rouanet.
Na condição de principal instrumento federal de política de
cultura, a lei -criada em 1991 pelo diplomata, doutor em ciência
política e acadêmico Sergio Paulo
Rouanet, 68-, sofreu críticas da
equipe de transição de Lula (estaria a serviço de um modelo neoliberal) e pode ser revista no futuro
governo.
Rouanet foi secretário da Cultura de Fernando Collor de Mello
entre 1991 e 1992. Na Presidência
de Collor, o Ministério da Cultura
foi substituído pela Secretaria.
Hoje, seguro de que pode "contribuir muito mais para a cultura
brasileira" como "intelectual independente do que exercendo
qualquer cargo burocrático ou
político", Rouanet falou à Folha
sobre a lei que leva seu nome.
Folha - Relatório da equipe de
transição de Lula diz que o governo
FHC implantou modelo de gestão
neoliberal, sobretudo por meio da
Lei Rouanet. O sr. concorda?
Sérgio Paulo Rouanet - Sei que [o
ministro da Cultura Francisco"
Weffort se esforçou para aumentar os recursos disponíveis para a
cultura e que contribuiu muito
para desburocratizar a aplicação
da lei de incentivo à cultura.
Quanto à lei, não vejo como ela
possa ser classificada como neoliberal. A decisão sobre que projetos podem beneficiar-se dos incentivos não cabe ao mercado, e
sim à CNIC (Comissão Nacional
de Incentivo à Cultura), órgão colegiado que inclui as principais
instituições culturais da sociedade civil, nenhuma das quais tem
ligação com a economia.
A lei estabelece os critérios para
o enquadramento dos projetos, e
todos eles têm a ver com seu mérito do ponto de vista cultural, e não
com sua rentabilidade empresarial. Os patrocínios só podem ser
buscados depois disso.
Não é o projeto que se subordina ao mercado, é o mercado que
se subordina aos critérios culturais que a CNIC exige para a aprovação do projeto.
Em segundo lugar, é importante
não perder de vista que a lei inclui
o mecenato, mas não se restringe
ao mecenato. Por uma razão misteriosa, quando as pessoas se referem à lei, têm a tendência a esquecer que uma de suas partes fundamentais é o Fundo Nacional de
Cultura, dinheiro que o MinC tem
à sua disposição, e que pode usar
livremente para fomentar atividades culturais, sem qualquer participação por parte do mercado.
Os recursos gerados por esse
fundo não somente independem
do mercado como podem e devem ser usados para financiar
precisamente os projetos que não
interessam ao mercado.
Folha - Críticos da lei sustentam
que seu uso teria sido concentrador no eixo Rio-SP, privilegiaria artistas estabelecidos em detrimento
de iniciantes, apoiaria projetos artisticamente conservadores e politicamente acomodados e autorizaria renúncia fiscal em benefício
próprio (para institutos culturais
associados a instituições financeiras, por exemplo). O sr. concorda?
Rouanet - A concentração geográfica no eixo Rio-São Paulo é
um reflexo da desigual distribuição regional de renda e só pode
ser corrigida em caráter definitivo
por medidas socioeconômicas
mais amplas, que não se limitam a
medidas de cunho cultural.
Muito pode ser feito no âmbito
cultural. Talvez devesse ser incluída entre os critérios para a aprovação dos projetos sua relevância
para Estados e regiões menos desenvolvidas. A composição da
CNIC deveria ser mais equilibrada sob o aspecto regional. Os recursos do Fundo Nacional de Cultura deveriam ser administrados
de modo a corrigir a tendência à
concentração geográfica.
É indispensável que os recursos
orçamentários do próprio MinC
sejam repassados para as regiões
menos desenvolvidas, com base
em convênios bilaterais entre o
governo federal e os Estados.
A pré-condição para isso é que o
orçamento do MinC passe dos níveis atuais [a previsão para 2003 é
de R$ 298 milhões" para um patamar menos escandaloso. É obviamente inaceitável que a renúncia
fiscal redunde em benefício para
institutos culturais associados a
instituições financeiras.
Folha - O governo FHC criou a
Agência Nacional do Cinema, subordinada à Casa Civil, e reservou
ao MinC a gestão de parcela do audiovisual desprovida de viabilidade comercial -caso dos curtas-metragens, por exemplo. O sr. acha
correta a instalação de uma agência reguladora? Está de acordo com
a definição de cinema industrial e
cinema cultural?
Rouanet - Em princípio, acho
pouco produtiva a tentativa de
traçar uma fronteira entre cinema
como arte e cinema como indústria. Numa economia capitalista,
todas as atividades culturais têm
sempre uma dupla face, uma em
que aparecem como bens culturais, voltadas para o valor de uso,
e outra em que aparecem como
produtos culturais, como mercadorias, voltadas para o valor de
troca.
Deveria caber à mesma instituição levar em conta as duas dimensões do cinema, assegurando por
um lado sua viabilidade como indústria e sua competitividade internacional, e por outro, dando os
incentivos necessários para os filmes sem vocação comercial.
Por isso o bom senso mandaria
que a agência em questão mantivesse seu caráter supra-ministerial, o que permitiria que os dois
aspectos fossem considerados de
forma integrada.
Mas não estou informado sobre
o assunto e por isso mantenho
meu espírito aberto.
Folha - A política cultural do governo Lula aponta para o tratamento da cultura como mecanismo
de inclusão social. Qual sua opinião
sobre a associação das políticas de
cultura com práticas assistencialistas e de inclusão social?
Rouanet - A exclusão cultural é
parte de um processo geral de exclusão socioeconômica e só pode
ser corrigida no bojo de um programa de inclusão social ampla.
Mas isso não significa que a política cultural não tenha uma contribuição importantíssima a dar a
esse programa.
Uma política de inclusão cultural pressupõe por definição uma
ênfase especial nas necessidades
das camadas menos favorecidas.
Isso envolve, naturalmente, o fomento à produção cultural popular. Mas implica, também, o favorecimento do acesso de todos à
cultura, seja ela popular ou erudita, nacional ou estrangeira.
Uma política que se limite a favorecer a produção cultural erudita é elitista e discriminatória.
Mas uma política que ignore a importância de favorecer o acesso
popular à grande literatura, nacional e universal, ou à grande
música e à grande ópera, é igualmente elitista e discriminatória.
Folha - No livro "As Razões do Iluminismo", o sr. aborda o antielitismo e assinala o equívoco dessa tendência ao desqualificar a cultura
superior. Acha que, com o governo
Lula, ressurge a tendência pela valorização da cultura popular em
oposição à cultura cultivada?
Rouanet - É importante fazer algumas distinções, que hoje em dia
vêm sendo esquecidas. Popular
não é sinônimo de popularidade,
equívoco muitas vezes cometido
por intelectuais que se julgam de
esquerda, com um olho em
Gramsci e outro no Ibope.
E cultura de massas não é a mesma coisa que cultura popular. É
esta que precisa ser protegida, não
a primeira. Uma política cultural
voltada para a cultura popular
-e nenhuma outra é possível, no
país monstruosamente desigual
em que vivemos- significa duas
coisas.
Significa favorecer as manifestações artísticas populares. Mas
significa também tirar da marginalidade as populações hoje excluídas dos grandes circuitos da
cultura, brasileira e universal.
Não podemos adotar uma política que, embora antielitista na intenção, implica manter num gueto cultural uma população que já
vive num gueto socioeconômico.
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