|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Quem julgará Saddam Hussein?
Resumo alguns sentimentos
modernos em matéria de
justiça.
O julgamento que conta é o de
nossa consciência. A prova disso:
fazemos, desde o século 17, uma
bela diferença entre o que é legal e
o que é justo. Condenados por excesso de velocidade na Dutra, entendemos que 130 km/h seja ilegal, mas nós conhecemos as razões de nossa pressa e só nós sabemos se, ilegal ou não, nossa velocidade era justa ou injusta.
As coisas eram mais simples
quando, nem tanto tempo atrás,
achávamos que a decisão podia
ficar na mão de um Deus que se
expressaria publicamente. Acusados, caminharíamos sobre a brasa e seríamos inocentados se nossos pés não queimassem.
Também devia ser mais simples
quando podíamos delegar a justiça (não apenas a legalidade) a
um sábio, príncipe ou representante de Deus, ao qual reconheceríamos o poder de proclamar, incontestado, se somos culpados ou
inocentes.
Esses recursos não valem para
quem, como a gente, erige o foro
íntimo em corte suprema.
Ora, tantas cortes singulares e
inevitavelmente contraditórias
não poderiam regrar eficazmente
nossa vida social; nos resignamos,
portanto, a um compromisso:
consideramos justo e toleramos
que um júri de outros humanos
(cujo foro íntimo seria comparável ao nosso) escute as acusações e
os argumentos de defesa e, assim,
nos condene ou nos inocente.
Detalhe crucial: os sentimentos
que acabo de resumir são uma
realidade cultural. Valem para
nós, ocidentais e modernos, que 1)
damos sentido ao mundo a partir
de certezas (ou dúvidas) subjetivas e 2) acreditamos que todos os
homens sejam nossos semelhantes.
Essas considerações teriam sido
pouco relevantes no processo de
Nuremberg. Os nazistas eram tão
ocidentais e modernos quanto
nós. Ou seja, foi-lhes imposta
uma justiça nos moldes da cultura da qual eles também eram o
produto. O mesmo vale para o
processo em curso contra os responsáveis por crimes contra a humanidade na Bósnia.
A expressão "crime contra a humanidade", aliás, tem um duplo
sentido. Designa um crime tão
abominável que a humanidade
inteira é ferida pela crueldade dos
atos. Mas designa também e talvez sobretudo um crime contra a
idéia de humanidade, ou seja,
contra a idéia de que, além ou
aquém de nossas diferenças religiosas, nacionais etc., somos semelhantes, membros de uma
mesma espécie. Perseguir, exterminar uma população por sua diferença significa negar a existência da comunidade dos humanos,
quebrar um pressuposto que talvez seja a melhor conquista de
nossa cultura.
Pode-se dizer que um tribunal
de "pares" julgou os nazistas porque quebraram uma regra da cultura à qual eles mesmos pertenciam. O mesmo vale para Milosevic e companhia.
A história de Saddam Hussein
talvez seja um pouco diferente. O
Iraque é uma criação da cultura
ocidental: esquecidos de que a comunidade da espécie humana é
uma invenção cultural, os ocidentais acreditaram que na Mesopotâmia, no caso, seria possível a
coexistência, numa mesma nação, de diferenças étnicas (árabes
e curdos) e religiosas (sunitas e
xiitas).
Saddam topou o mandato, mas
não seu pressuposto. Governou
sua "nação" como um chefe tribal, ou seja, exclusivamente em
prol de sua família e de sua tribo,
a minoria sunita. Reprimiu e exterminou xiitas e curdos. Perseguiu os opositores como se não
fossem gente. É um crime contra a
idéia de humanidade. Mas esse
crime vale na consciência ocidental moderna. Será que é essa a
consciência de Saddam?
Não tenho nenhuma compaixão. Quer a gente condene ou não
a intervenção americana no Iraque, não derramo lágrimas por
um tirano. Desejo-lhe o destino
que desejo a todos aqueles que
ameaçam o que nossa cultura inventou de melhor.
Mas acho desastroso que esqueçamos o seguinte: a Justiça que o
condenará não será uma Justiça
absoluta, que não existe, mas a
nossa, ocidental e moderna. O tribunal que se reunirá para julgá-lo será uma emanação de nosso
expansionismo cultural. Não lamento que seja assim. Mas lamento que possamos, como acredito que acontecerá, negar mais
uma vez a diferença e o conflito
cultural que se expressarão no
julgamento.
Gostaria, em suma, que nossa
cultura abandonasse sua extraordinária pretensão de ser não uma
cultura, mas a voz de alguma
"natureza humana".
Ao que parece, os atos de Saddam serão avaliados por um tribunal iraquiano. Isso satisfaz
nosso sentimento de justiça, pois
ele será julgado por um júri de
seus "pares" e "semelhantes", não
é? Mas pense bem: num eventual
júri iraquiano, sentarão xiitas
(que, para Saddam, são uma "tribo" oposta e, portanto, menos
"humana" do que a sua) e curdos
(que, para ele, devem ser uma
sub-raça exterminável com a
mesma emoção que nós sentimos
ao erradicar o mosquito da dengue).
O Ocidente verá, nesse julgamento, a obra de uma Justiça
imemorial e universal. O acusado
verá apenas um conciliábulo de
inimigos que têm o direito de dispor de sua vida não em nome da
Justiça, mas em nome da força, ou
seja, por ele ter sido derrotado.
Aposto que manterá a expressão perdida do chefe tribal desfilando acorrentado atrás do Exército vencedor.
E, falando em expressão, a cara
de Saddam descabelado e barbudo, de olhar apagado, enquanto
um médico de luvas de látex examinava seus dentes e repartia
seus cabelos procurando lêndeas e
piolhos, parecia estranhamente
familiar. Era o protótipo do mendigo árabe nas ruas de Paris.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Crítica: Ex-vilão faz a graça de comédia singela Próximo Texto: DVD/lançamento: Cinema falado no grito Índice
|