São Paulo, segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

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CD traz viola caipira de beca e fardão

"Sons do Grande Sertão" leva a viola para o campo da erudição ao unir pilares da cultura do cerrado

JOSÉ HAMILTON RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

José Perez, filho de espanhol com índia, nascido pelos lados de Sorocaba, e que vem a ser o Tinoco, da dupla Tonico e Tinoco -um dos dois únicos patriarcas da música caipira vivos- costuma dizer: "No meu tempo na roça, não tinha rádio, não tinha nada.
Não tinha nem apito de trem". Tudo que ouvia e que seria o manancial de sua arte vinha do sertão.
A música caipira floresceu a partir dos anos 20 (com força, até os anos 70), quando o Brasil era essencialmente rural.
Durante bom tempo, 80% dos brasileiros viviam nos sítios, nas fazendas, nas corrutelas, e esse era o universo da música caipira. Aí, começou a mudar, e hoje dá-se até o inverso: mais de 80% da população está na cidade. O mundo do caipira desabou. Como lamenta Júnior Borges, violeiro de Uberaba: "Não tem mais carro de boi, boiada, tropeiro, sapé, ranchinho beira-chão, baile na roça. Caça sumiu, os rios estão poluídos, peixe agora só de pesque-pague. Fazer música caipira com o quê?".
As pessoas dizem que a música caipira está hoje diante de três opções: a dos "sertanejos modernos", essas duplas de sucesso que estão mais para subúrbio que para o campo; a dos tradicionalistas, que a querem como era, embora isso seja irreal; e terceira, a que leva a viola para o campo da erudição.
Esse CD "Sons do Grande Sertão", que acompanha a revista "Estudos Avançados da USP", é um documento apropriado e precioso da viola caipira tratada como instrumento de orquestra sinfônica e da temática caipira como assunto de estudo.
Não sei se o povão que curte as modas pelo forte apelo emocional das letras vai se sentir em casa com esse disco, mas, para mim, sinto que é coisa valiosa, entre outros motivos, pelo encontro que promove de três grandes pilares da cultura do cerrado: Guimarães Rosa, por "Grande Sertão: Veredas"; Antonio Candido, por "Parceiros do Rio Bonito" -este o mais belo estudo do mundo caipira paulista-; e a viola caipira, aqui manejada com talento por Ivan Vilela, Renato Andrade, Tavinho Moura, Rodrigo Delage, Paulinho Freire.
Além desse "encontrão com a história" e de bons intérpretes, o CD conta com algumas raridades, como a voz do vaqueiro Manuelzão puxando o aboio da faixa dez e o venerável prof. Antonio Candido pondo versos de Guimarães Rosa em antiga moda e cantando-a com timidez, mas com sua própria voz!
Se isso fosse possível, era o caso de sugerir a formação de uma nova dupla caipira: Antonio C. e João Rosa. Ia ser coisa de cinema.


O jornalista JOSÉ HAMILTON é autor de "Música Caipira - As 270 Maiores Modas de Todos os Tempos", da ed. Globo (R$ 32; 272 págs.).


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