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Memória
Escritor "doou" obra à mulher Aracy
RENÉ DANIEL DECOL
ESPECIAL PARA A FOLHA
"A Aracy, minha mulher, Ara, pertence
este livro". Assim,
com essa simples epígrafe, começa uma epopéia da literatura
mundial, "Grande Sertão: Veredas". No entanto, ao se comemorar os 50 anos do livro mais importante de João Guimarães
Rosa, pouco se falou sobre a
mulher que teve um papel fundamental em sua vida.
Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, 98, foi a segunda mulher de Guimarães Rosa e, no seu período mais fértil como
escritor, a única e grande companheira. Ambos foram casados antes e tiveram filhos dos casamentos anteriores. Mas
Aracy foi a sua grande companheira, mulher e inspiração.
Uma personagem tão importante quanto Simone de Beauvoir para Sartre. Foi sua interlocutora privilegiada. "Aracy
viveu com Guimarães Rosa 30
anos, de "Sagarana", sua primeira obra importante, até a morte
do escritor", diz Neuma Cavalcanti, professora da Universidade Federal do Ceará. "Ela sugeria e participava da obra.
Tanto que "Grande Sertão" não
é dedicado; é dado: ele o "doou" à
Aracy, como diz a epígrafe".
Se Aracy foi tão importante,
por que sua imagem está apagada? "A questão é que eles eram
discretos. Ela ficava afastada
dos holofotes", diz Cavalcanti.
Há quem acredite que Diadorim, a personagem central do
"Grande Sertão", tenha sido
inspirada nela. É possível.
Aracy tinha algo de Hannah
Arendt, a intelectual liberal alemã que não aceitava o totalitarismo. Era corajosa, desafiou o
nazismo e o Estado Novo de
Getúlio. Era culta, poliglota e,
segundo alguns, uma das mulheres mais atraentes de seu
tempo. "Não me admira que
Guimarães Rosa tenha se apaixonado por ela", diz José Gregori, presidente do Conselho Municipal de Direitos Humanos e ex-ministro da Justiça.
"Era uma mulher de uma rara
beleza, competente, e praticava
um tipo raro de solidariedade."
Encontro na Alemanha
Aracy e Rosa se conheceram
em Hamburgo, às vésperas da
Segunda Guerra. "Em 1934, Rosa fez o concurso para o Itamaraty. Via na diplomacia um
meio de conhecer o mundo,
coisa que, como menino pobre,
jamais poderia fazer", diz Franklin de Oliveira na introdução
de uma antiga edição do "Grande Sertão". "Seu primeiro posto
na carreira foi na Alemanha,
onde conheceu sua segunda
mulher, que seria a companheira de toda a vida -Aracy Moebius de Carvalho, que ele tratava carinhosamente de Ara."
Aracy, nascida no interior do
Paraná, depois de se separar de
primeiro marido -algo malvisto pela rígida moral dos anos
30-, foi morar com uma tia na
Alemanha. Como falava alemão, inglês e francês, conseguiu uma nomeação para o
consulado brasileiro em Hamburgo. Ficou encarregada da
seção de vistos. Guimarães Rosa chegou em Hamburgo em
1937, também já separado e no
mesmo ano em que entrava em
vigor a Circular Secreta 1.127,
que restringia a entrada de judeus no Brasil -desdobramento do fascínio que Getúlio Vargas inicialmente sentiu pelos
regimes de Hitler e Mussolini.
Contrariando as ordens do
Itamaraty, Aracy criou esquemas para burlar a atenção do
cônsul-geral. "Minha mãe resolveu ignorar a circular que
proibia a concessão de vistos a
judeus e continuou a preparar
os processos, à revelia das ordens do Itamaraty e de seus superiores. Como despachava papéis com o cônsul-geral, no
meio enfiava os vistos", relata
Eduardo Tess, filho de seu primeiro casamento. A iniciativa,
embora tivesse o apoio discreto
de Guimarães Rosa, partiu dela.
"Como cônsul-adjunto, ele não
era responsável pelos vistos.
Mas apoiava o que ela fazia."
Maria Margarida Bertel Levy
é uma das que foram salvas por
Aracy. "Ela me levou pessoalmente ao navio, usando seu
passaporte diplomático", lembra. Margarida, como muitos
outros judeus que moravam na
Alemanha, subestimou o perigo representado por Hitler.
"Hamburgo era uma cidade liberal, e imaginávamos que estivéssemos a salvo do perigo."
Triste engano. Primeiro de
setembro de 1939. Os alemães
invadem a Polônia. Começa a
guerra. Aracy continua a dar
vistos para judeus, arriscando o
emprego e a vida. Em maio de
1940, a Inglaterra passa a bombardear alvos estratégicos em
Berlim, Dresden e Hamburgo.
Até o fim de 1941, mais de 50
mil toneladas de bombas serão
jogadas sobre as cidades.
Diário de guerra
Guimarães Rosa escreve então um diário de guerra, ainda
inédito. "É um trabalho interessante porque tem recortes
de jornais, e, pela forma como
estão colados e comentados, é
possível deduzir o que ocorre
no período", diz Wander Melo
Miranda, professor titular de literatura da UFMG e diretor da
editora da mesma universidade. O livro vem sendo preparado para publicação por dois professores brasileiros e um
alemão, mas, por problemas jurídicos, ainda não tem data de
publicação prevista.
"É o único diário sobre a Segunda Guerra escrito por um
grande nome da literatura latino-americana", diz Miranda.
"Não sabemos se o livro poderá
ser lançado ou não. Gostaríamos de vê-lo nas livrarias." É de
se prever que o livro teria enorme repercussão principalmente na Alemanha, onde o escritor sempre foi particularmente
apreciado e onde sua obra é
bastante estudada, tendo sido
comparado a Thomas Mann.
O papel de Aracy como uma
das pessoas que ajudou a salvar
judeus durante a guerra foi reconhecido com uma placa em
seu nome no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto
de Jerusalém, onde até recentemente era o único nome. É
homenageada ainda no Museu
do Holocausto em Washington.
O jornalista RENÉ DANIEL DECOL , filho de sobreviventes do Holocausto, é doutor em ciências sociais. No momento, escreve um livro sobre
imigração judaica para o Brasil.
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