São Paulo, segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

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Memória

Escritor "doou" obra à mulher Aracy

RENÉ DANIEL DECOL
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro". Assim, com essa simples epígrafe, começa uma epopéia da literatura mundial, "Grande Sertão: Veredas". No entanto, ao se comemorar os 50 anos do livro mais importante de João Guimarães Rosa, pouco se falou sobre a mulher que teve um papel fundamental em sua vida.
Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, 98, foi a segunda mulher de Guimarães Rosa e, no seu período mais fértil como escritor, a única e grande companheira. Ambos foram casados antes e tiveram filhos dos casamentos anteriores. Mas Aracy foi a sua grande companheira, mulher e inspiração.
Uma personagem tão importante quanto Simone de Beauvoir para Sartre. Foi sua interlocutora privilegiada. "Aracy viveu com Guimarães Rosa 30 anos, de "Sagarana", sua primeira obra importante, até a morte do escritor", diz Neuma Cavalcanti, professora da Universidade Federal do Ceará. "Ela sugeria e participava da obra.
Tanto que "Grande Sertão" não é dedicado; é dado: ele o "doou" à Aracy, como diz a epígrafe".
Se Aracy foi tão importante, por que sua imagem está apagada? "A questão é que eles eram discretos. Ela ficava afastada dos holofotes", diz Cavalcanti.
Há quem acredite que Diadorim, a personagem central do "Grande Sertão", tenha sido inspirada nela. É possível.
Aracy tinha algo de Hannah Arendt, a intelectual liberal alemã que não aceitava o totalitarismo. Era corajosa, desafiou o nazismo e o Estado Novo de Getúlio. Era culta, poliglota e, segundo alguns, uma das mulheres mais atraentes de seu tempo. "Não me admira que Guimarães Rosa tenha se apaixonado por ela", diz José Gregori, presidente do Conselho Municipal de Direitos Humanos e ex-ministro da Justiça.
"Era uma mulher de uma rara beleza, competente, e praticava um tipo raro de solidariedade."

Encontro na Alemanha
Aracy e Rosa se conheceram em Hamburgo, às vésperas da Segunda Guerra. "Em 1934, Rosa fez o concurso para o Itamaraty. Via na diplomacia um meio de conhecer o mundo, coisa que, como menino pobre, jamais poderia fazer", diz Franklin de Oliveira na introdução de uma antiga edição do "Grande Sertão". "Seu primeiro posto na carreira foi na Alemanha, onde conheceu sua segunda mulher, que seria a companheira de toda a vida -Aracy Moebius de Carvalho, que ele tratava carinhosamente de Ara."
Aracy, nascida no interior do Paraná, depois de se separar de primeiro marido -algo malvisto pela rígida moral dos anos 30-, foi morar com uma tia na Alemanha. Como falava alemão, inglês e francês, conseguiu uma nomeação para o consulado brasileiro em Hamburgo. Ficou encarregada da seção de vistos. Guimarães Rosa chegou em Hamburgo em 1937, também já separado e no mesmo ano em que entrava em vigor a Circular Secreta 1.127, que restringia a entrada de judeus no Brasil -desdobramento do fascínio que Getúlio Vargas inicialmente sentiu pelos regimes de Hitler e Mussolini.
Contrariando as ordens do Itamaraty, Aracy criou esquemas para burlar a atenção do cônsul-geral. "Minha mãe resolveu ignorar a circular que proibia a concessão de vistos a judeus e continuou a preparar os processos, à revelia das ordens do Itamaraty e de seus superiores. Como despachava papéis com o cônsul-geral, no meio enfiava os vistos", relata Eduardo Tess, filho de seu primeiro casamento. A iniciativa, embora tivesse o apoio discreto de Guimarães Rosa, partiu dela. "Como cônsul-adjunto, ele não era responsável pelos vistos.
Mas apoiava o que ela fazia." Maria Margarida Bertel Levy é uma das que foram salvas por Aracy. "Ela me levou pessoalmente ao navio, usando seu passaporte diplomático", lembra. Margarida, como muitos outros judeus que moravam na Alemanha, subestimou o perigo representado por Hitler.
"Hamburgo era uma cidade liberal, e imaginávamos que estivéssemos a salvo do perigo."
Triste engano. Primeiro de setembro de 1939. Os alemães invadem a Polônia. Começa a guerra. Aracy continua a dar vistos para judeus, arriscando o emprego e a vida. Em maio de 1940, a Inglaterra passa a bombardear alvos estratégicos em Berlim, Dresden e Hamburgo.
Até o fim de 1941, mais de 50 mil toneladas de bombas serão jogadas sobre as cidades.

Diário de guerra
Guimarães Rosa escreve então um diário de guerra, ainda inédito. "É um trabalho interessante porque tem recortes de jornais, e, pela forma como estão colados e comentados, é possível deduzir o que ocorre no período", diz Wander Melo Miranda, professor titular de literatura da UFMG e diretor da editora da mesma universidade. O livro vem sendo preparado para publicação por dois professores brasileiros e um alemão, mas, por problemas jurídicos, ainda não tem data de publicação prevista.
"É o único diário sobre a Segunda Guerra escrito por um grande nome da literatura latino-americana", diz Miranda.
"Não sabemos se o livro poderá ser lançado ou não. Gostaríamos de vê-lo nas livrarias." É de se prever que o livro teria enorme repercussão principalmente na Alemanha, onde o escritor sempre foi particularmente apreciado e onde sua obra é bastante estudada, tendo sido comparado a Thomas Mann.
O papel de Aracy como uma das pessoas que ajudou a salvar judeus durante a guerra foi reconhecido com uma placa em seu nome no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto de Jerusalém, onde até recentemente era o único nome. É homenageada ainda no Museu do Holocausto em Washington.


O jornalista RENÉ DANIEL DECOL , filho de sobreviventes do Holocausto, é doutor em ciências sociais. No momento, escreve um livro sobre imigração judaica para o Brasil.


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