São Paulo, sábado, 19 de janeiro de 2002

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TEATRO

"NOVAS DIRETRIZES EM TEMPO DE PAZ"

Texto de Bosco Brasil narra drama de imigrante sobrevivente de guerra

Montagem tem fragilidade de um "cult"

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Dan Stulbach e Jairo de Mattos em cena de "Novas Diretrizes em Tempos de Paz", um texto de Bosco Brasil, em cartaz no teatro Ágora


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Novas Diretrizes em Tempo de Paz" tem o charme e a fragilidade de uma montagem "cult". Apresentado inicialmente em setembro passado em um ciclo de leituras de textos inéditos (Ágora Livre Dramaturgias, que reuniu outros autores), o texto de Bosco Brasil teve uma boa acolhida, o que o habilitou assim a voltar enquanto montagem nesse mesmo teatro Ágora.
Introduz a figura do imigrante sobrevivente de guerra, raro em nossa dramaturgia, que é feito com concentração e empatia por Dan Stulbach, entre a esperteza e a ingenuidade, remetendo um pouco à imagem de Forrest Gump. A ação se concentra nos 50 minutos que tal imigrante tem para convencer o delegado, ex-torturador sem função no fim da ditadura de Vargas, a conceder-lhe o visto de permanência no país.
Contrapontos vão se desenhando, não raro flertando com a metalinguagem. O imigrante é um ator polonês, apaixonado pela língua portuguesa e repugna em usá-la para narrar as suas lembranças de guerra. Jairo Mattos faz o delegado que, treinado para obedecer superiores e torturar presos, não sabe como sobreviverá em tempos de paz.
Talvez por sua personagem exigir menos, Mattos acaba transparecendo um certo desleixo, tornando mais previsível o depoimento do delegado. Querendo evitar o maniqueísmo, cai em fragilidade fácil, que entrega de antemão a vitória ao antagonista.
O texto de Bosco Brasil poderia funcionar como fábula, mais do que reconstituição de época, mas ainda parece imaturo. Firma-se em excesso em bordões que acabam desviando a atenção do conflito. Arrisca-se a explicitar o tempo real ("Você tem dez minutos para me fazer chorar", desafia o delegado), mas não cumpre a aposta (o imigrante leva bem mais tempo e, quando consegue, o clímax já soa implausível). Acaba se resolvendo em uma ingênua exaltação ao teatro, quando suas premissas davam esperanças de um debate mais profundo.
A direção de Ariela Goldman tem o mérito de se concentrar nos atores, mas acaba pecando por excesso de detalhes: limita-se a compor retratos. Não questiona o texto, não propõe cortes nem distanciamentos, por excesso de cumplicidade, talvez, já que Goldman já contracenava com Jairo Mattos em "Budro" e "Atos e Omissões". Para se superar, Brasil precisaria de um diretor "de fora", que não deixasse seus atos redundarem em omissões.
Quase assumido enquanto esboço, o que é bastante saudável, o espetáculo infelizmente acaba parecendo mais longo que seus 50 minutos. Tem o mérito de propor novas diretrizes para um tempo menos maniqueísta, no qual o horror da tortura é um fato histórico, uma vergonha confessada, mais que uma denúncia premente. Abre a porta para uma nova rodada de textos inéditos nacionais que se anuncia vigorosa nesse início de temporada.


Novas Diretrizes em Tempo de Paz
  
Direção: Ariela Goldman
Com: Dan Stulbach e Jairo Mattos
Onde: teatro Ágora (r. Rui Barbosa, 672, Bela Vista, SP, tel. 0/xx/11/3284-0290)
Quando: de qui. a dom., às 21h. Até 27/2
Quanto: R$ 20





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