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ERUDITO
Pianista italiano Maurizio Pollini interpreta quatro sonatas de Ludwig van Beethoven em estúdio e ao vivo
Quando a vanguarda ensina a ouvir o passado
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
O final é fantástico. Literalmente as últimas notas da
última sonata (op. 90) no disco.
Uma grande frase se ergue, acompanhando o arco de dinâmica e
ritmo, com aquela simplicidade
ao mesmo tempo tão concreta e
abstrata que caracteriza a última
fase de Beethoven (1770-1827). E a
música se encerra sem nenhuma
ênfase, nenhuma indicação de
que estamos chegando ao fim. É
preciso um pianista como Maurizio Pollini para tocar o final desse
modo, desbastando camadas e
camadas de estilo e paixão.
Paixão e estilo não faltam ao
pianista milanês, que aos 62 anos
parece cada vez mais livre de suas
próprias determinações, sem trair
seu caráter. Como escreveu Edward Said, "ao reagir aos infinitamente variáveis impulsos, acentos, frases, pausas e inflexões rítmicas e retóricas, [Pollini] está comentando [cada] peça, dando sua
versão dela" (em "Reflexões Sobre o Exílio", 2003). A palavra-chave é "comentando": um pianista desses se assemelha ao ensaísta, capaz de reinventar a música pelas vias do comentário. E a
própria carreira do artista ganha,
assim, uma dimensão crítica.
Certa reserva de fundo, que se
ouvia nas gravações das décadas
de 1970 e 80, desapareceu em benefício de um "estilo tardio" que
faz pensar, justamente, em Beethoven. E todo seu Beethoven
-inclusive sonatas do período
médio, como a op. 54, a "Appassionata" e a op. 78, nesse disco-
surge agora revisto, da perspectiva de quem foi adiante, com toda
a carga de compreensão emotiva
a que faz jus.
O que talvez mais tenha mudado é a própria idéia que Pollini
nos dá do estilo tardio. O anti-sentimentalismo de ontem, fascinado com as formas, cedeu espaço para outros interesses, sem cair
no seu contrário. Para quem
acompanhou o percurso, ouvir
Pollini hoje tocando a "Appassionata" sugere até que ponto chegou a assimilação da vanguarda.
Só um pianista versado em
Stockhausen e Boulez tocaria como ele as brutais mudanças de
textura e dinâmica que já estão na
partitura, mas quase ninguém
tem coragem de seguir. E o impacto é ainda maior na versão ao
vivo, gravada no Musikverein de
Viena, em 2002 (no disco-bônus).
A liberdade da música vence toda e qualquer contingência, mas
pede para ser acolhida no mundo
humano da sala de concerto. As
franquezas rigorosas do pianista
comentam e recriam essa arte em
tempo real. Gravada em estúdio,
depois, ela vira a tradução de si:
mais madura, mais bonita, mais
distante de nós.
Ludwig van Beethoven: Sonatas
op. 54, 57, 78 e 90
Artista: Maurizio Pollini
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 50 (www.amazon.com)
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