São Paulo, segunda-feira, 19 de janeiro de 2004

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ERUDITO

Pianista italiano Maurizio Pollini interpreta quatro sonatas de Ludwig van Beethoven em estúdio e ao vivo

Quando a vanguarda ensina a ouvir o passado

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

O final é fantástico. Literalmente as últimas notas da última sonata (op. 90) no disco. Uma grande frase se ergue, acompanhando o arco de dinâmica e ritmo, com aquela simplicidade ao mesmo tempo tão concreta e abstrata que caracteriza a última fase de Beethoven (1770-1827). E a música se encerra sem nenhuma ênfase, nenhuma indicação de que estamos chegando ao fim. É preciso um pianista como Maurizio Pollini para tocar o final desse modo, desbastando camadas e camadas de estilo e paixão.
Paixão e estilo não faltam ao pianista milanês, que aos 62 anos parece cada vez mais livre de suas próprias determinações, sem trair seu caráter. Como escreveu Edward Said, "ao reagir aos infinitamente variáveis impulsos, acentos, frases, pausas e inflexões rítmicas e retóricas, [Pollini] está comentando [cada] peça, dando sua versão dela" (em "Reflexões Sobre o Exílio", 2003). A palavra-chave é "comentando": um pianista desses se assemelha ao ensaísta, capaz de reinventar a música pelas vias do comentário. E a própria carreira do artista ganha, assim, uma dimensão crítica.
Certa reserva de fundo, que se ouvia nas gravações das décadas de 1970 e 80, desapareceu em benefício de um "estilo tardio" que faz pensar, justamente, em Beethoven. E todo seu Beethoven -inclusive sonatas do período médio, como a op. 54, a "Appassionata" e a op. 78, nesse disco- surge agora revisto, da perspectiva de quem foi adiante, com toda a carga de compreensão emotiva a que faz jus.
O que talvez mais tenha mudado é a própria idéia que Pollini nos dá do estilo tardio. O anti-sentimentalismo de ontem, fascinado com as formas, cedeu espaço para outros interesses, sem cair no seu contrário. Para quem acompanhou o percurso, ouvir Pollini hoje tocando a "Appassionata" sugere até que ponto chegou a assimilação da vanguarda.
Só um pianista versado em Stockhausen e Boulez tocaria como ele as brutais mudanças de textura e dinâmica que já estão na partitura, mas quase ninguém tem coragem de seguir. E o impacto é ainda maior na versão ao vivo, gravada no Musikverein de Viena, em 2002 (no disco-bônus).
A liberdade da música vence toda e qualquer contingência, mas pede para ser acolhida no mundo humano da sala de concerto. As franquezas rigorosas do pianista comentam e recriam essa arte em tempo real. Gravada em estúdio, depois, ela vira a tradução de si: mais madura, mais bonita, mais distante de nós.


Ludwig van Beethoven: Sonatas op. 54, 57, 78 e 90     
Artista: Maurizio Pollini
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 50 (www.amazon.com)



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