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NELSON ASCHER
Dezessete sílabas
Há discussões que, graças à imprecisão dos conceitos, nunca terminam. A oposição
entre Ocidente e Oriente durante
os últimos cem anos é uma dessas.
Embora não se ignorasse que civilizações complexas existiam em
ambos os extremos da Eurásia,
além de se exageraram seus contrastes, às vezes negativamente (o
dinamismo europeu vs. a inércia
oriental), às vezes positivamente
(a Europa materialista vs. a Ásia
espiritual), teorizou-se que cada
lado pensava e sentia de modo totalmente diverso.
A historiografia contemporânea, no entanto, que sublinha,
por um lado, as semelhanças de
fundo entre as civilizações sedentárias de leste e oeste, enfatiza,
por outro, as diferenças entre estas e as culturas nômades (em especial as da Ásia central). Hunos,
mongóis e os povos túrquicos se
deslocaram milênios a fio pela estepe, ameaçando (e interligando)
tanto a China como o Império
Romano e seus sucessores. Se os
ocidentais estudam há tempo o
extremo Oriente e lhe apreciam a
cultura, são os nômades, mesmo
os posteriormente sedentarizados, que continuam enigmáticos.
A imprecisão conceitual se revela quando se recorda que a nação
mais afastada do Mediterrâneo, o
Japão, não deixa de ser, em muitos aspectos, bem ocidental. A
geografia que determinou muito
de sua história tem menos a ver
com essa distância do que com a
insularidade que fez do arquipélago em questão algo não raro
mais parecido com as Ilhas Britânicas do que com a China. Não é
à toa que Akira Kurosawa admirava Shakespeare e o adaptou
com genialidade e congenialidade.
Entre as provas de tais "afinidades eletivas" se encontram a "ética protestante de trabalho", que
permitiu aos japoneses se tornarem a segunda principal potência
capitalista, e a influência que,
desde os primórdios da modernidade literária, sua poesia exerceu
sobre os autores e leitores estrangeiros. Afinal, desde que, oitocentos anos atrás, os italianos inventaram o soneto, nenhuma forma
fixa conquistou tantos seguidores
no planeta inteiro quanto o haicai.
O haicai tem uma longa trajetória. Tão logo começou a ser registrada por escrito, no século 8, a
poesia nipônica já mostrava sua
predileção pela alternância de
versos não rimados de cinco e sete
sílabas. O "tanka", com cinco linhas de respectivamente 5/7/ 5/
7/7 sílabas, que principiara como
resumo final de composições longas ("chõka"), ganhou autonomia e se estabeleceu enquanto a
principal forma lírica do Japão
medieval. Depois, devido ao costume de amigos reunidos escreverem, numa espécie de desafio, seqüências de "tanka", surgiu o
"renga" (poesia encadeada), para
a qual um escrevia três linhas, o
seguinte duas e assim por diante.
O terceto inicial se chamava
"hokku" e, caso o tom fosse jocoso,
dava-se ao "renga" o nome de
"haikai". No final da era Muromachi (1338-1603), marcada pelas incessantes guerras civis, o
"hokku" alcançou sua independência e virou o gênero favorito
do período Edo (nome antigo de
Tóquio, 1603-1868). Após a restauração Meiji (1868), o grande
renovador Massaoka Shiki (1867-1902), juntando a primeira metade da palavra "haikai" com a segunda de "hokku", batizou a forma de "haiku".
Quem a consolidara, porém, fora seu grande praticante, Matsuo
Bashô (1644-94), o "mestre da cabana da bananeira" (Bashô é o
nome local da planta). Embora
seus "haikus" (veja destaque acima) transitem do sério ao irreverente, e o que muitos dizem soe
óbvio, ele embutiu, nas escassas
dezessete sílabas de cada qual,
surpresas, refinamentos e uma visão de mundo derivada do budismo zen. Este, uma vertente mais
anárquica e individualista da
doutrina criada na Índia, exaltava a meditação ("zen" em japonês, "cha'an" em chinês, "dhyana" em sânscrito) como caminho
para se atingir a iluminação, "satori" (mais especificamente: o florescimento súbito da compreensão).
Apesar da aparente simplicidade, o "haiku" obedece a regras
exigentes, como a obrigatoriedade de uma referência à estação do
ano ("kigo"). Ainda assim, o fascínio que exerce decorre de elementos que sempre o caracterizaram: a observação minuciosa, a
percepção instantânea, seu apego
ao que há de mais trivial ou cotidiano e, sobretudo, sua maneira
de entremostrar emoções não pela confissão direta, mas sim através de coisas e seres vistos, ouvidos, sentidos (e que T.S. Eliot definira em outro contexto como
"correlato objetivo"). Quando os
tradutores não interpõem suas
excentricidades, rimas fáceis e
sintaxe banal ou retorcida entre o
leitor e os melhores "haikus", estes patenteiam que alguns poetas
orientais sabiam meio milênio
atrás de coisas que seus colegas
ocidentais não descobriram antes
do século 20.
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