São Paulo, segunda-feira, 19 de janeiro de 2004

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NELSON ASCHER

Dezessete sílabas

Há discussões que, graças à imprecisão dos conceitos, nunca terminam. A oposição entre Ocidente e Oriente durante os últimos cem anos é uma dessas. Embora não se ignorasse que civilizações complexas existiam em ambos os extremos da Eurásia, além de se exageraram seus contrastes, às vezes negativamente (o dinamismo europeu vs. a inércia oriental), às vezes positivamente (a Europa materialista vs. a Ásia espiritual), teorizou-se que cada lado pensava e sentia de modo totalmente diverso.
A historiografia contemporânea, no entanto, que sublinha, por um lado, as semelhanças de fundo entre as civilizações sedentárias de leste e oeste, enfatiza, por outro, as diferenças entre estas e as culturas nômades (em especial as da Ásia central). Hunos, mongóis e os povos túrquicos se deslocaram milênios a fio pela estepe, ameaçando (e interligando) tanto a China como o Império Romano e seus sucessores. Se os ocidentais estudam há tempo o extremo Oriente e lhe apreciam a cultura, são os nômades, mesmo os posteriormente sedentarizados, que continuam enigmáticos.
A imprecisão conceitual se revela quando se recorda que a nação mais afastada do Mediterrâneo, o Japão, não deixa de ser, em muitos aspectos, bem ocidental. A geografia que determinou muito de sua história tem menos a ver com essa distância do que com a insularidade que fez do arquipélago em questão algo não raro mais parecido com as Ilhas Britânicas do que com a China. Não é à toa que Akira Kurosawa admirava Shakespeare e o adaptou com genialidade e congenialidade.
Entre as provas de tais "afinidades eletivas" se encontram a "ética protestante de trabalho", que permitiu aos japoneses se tornarem a segunda principal potência capitalista, e a influência que, desde os primórdios da modernidade literária, sua poesia exerceu sobre os autores e leitores estrangeiros. Afinal, desde que, oitocentos anos atrás, os italianos inventaram o soneto, nenhuma forma fixa conquistou tantos seguidores no planeta inteiro quanto o haicai.
O haicai tem uma longa trajetória. Tão logo começou a ser registrada por escrito, no século 8, a poesia nipônica já mostrava sua predileção pela alternância de versos não rimados de cinco e sete sílabas. O "tanka", com cinco linhas de respectivamente 5/7/ 5/ 7/7 sílabas, que principiara como resumo final de composições longas ("chõka"), ganhou autonomia e se estabeleceu enquanto a principal forma lírica do Japão medieval. Depois, devido ao costume de amigos reunidos escreverem, numa espécie de desafio, seqüências de "tanka", surgiu o "renga" (poesia encadeada), para a qual um escrevia três linhas, o seguinte duas e assim por diante. O terceto inicial se chamava "hokku" e, caso o tom fosse jocoso, dava-se ao "renga" o nome de "haikai". No final da era Muromachi (1338-1603), marcada pelas incessantes guerras civis, o "hokku" alcançou sua independência e virou o gênero favorito do período Edo (nome antigo de Tóquio, 1603-1868). Após a restauração Meiji (1868), o grande renovador Massaoka Shiki (1867-1902), juntando a primeira metade da palavra "haikai" com a segunda de "hokku", batizou a forma de "haiku".
Quem a consolidara, porém, fora seu grande praticante, Matsuo Bashô (1644-94), o "mestre da cabana da bananeira" (Bashô é o nome local da planta). Embora seus "haikus" (veja destaque acima) transitem do sério ao irreverente, e o que muitos dizem soe óbvio, ele embutiu, nas escassas dezessete sílabas de cada qual, surpresas, refinamentos e uma visão de mundo derivada do budismo zen. Este, uma vertente mais anárquica e individualista da doutrina criada na Índia, exaltava a meditação ("zen" em japonês, "cha'an" em chinês, "dhyana" em sânscrito) como caminho para se atingir a iluminação, "satori" (mais especificamente: o florescimento súbito da compreensão).
Apesar da aparente simplicidade, o "haiku" obedece a regras exigentes, como a obrigatoriedade de uma referência à estação do ano ("kigo"). Ainda assim, o fascínio que exerce decorre de elementos que sempre o caracterizaram: a observação minuciosa, a percepção instantânea, seu apego ao que há de mais trivial ou cotidiano e, sobretudo, sua maneira de entremostrar emoções não pela confissão direta, mas sim através de coisas e seres vistos, ouvidos, sentidos (e que T.S. Eliot definira em outro contexto como "correlato objetivo"). Quando os tradutores não interpõem suas excentricidades, rimas fáceis e sintaxe banal ou retorcida entre o leitor e os melhores "haikus", estes patenteiam que alguns poetas orientais sabiam meio milênio atrás de coisas que seus colegas ocidentais não descobriram antes do século 20.


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