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LIVROS
ENSAIO
Autor examina a origem da ansiedade causada pela opinião dos outros
Em "Status Anxiety", Alain
de Botton visita Montaigne
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Filme conhecido: entro numa
festa, alguém apresenta alguém.
Primeiros sorrisos, primeira pergunta. "O que você faz?" Peço desculpa, preciso de uma bebida. Dupla. E meu nome? Não quer saber
meu nome? Minha mundividência, sapiência, sensibilidade e sanidade? Não, apenas meu trabalho. Meu trabalho é meu cartão
identitário. Minha conta bancária
é marca de minha excelência moral. Então respondo. Minha resposta é avaliada por critérios produtivos. No final, meu apartamento, meu carro, meu salário e
meu escritório são processados
na cabeça meritocrática de quem
calcula tudo e avalia tudo. E agora, podemos conversar?
Não, não podemos. Podemos
ler Alain de Botton em "Status
Anxiety" (ansiedade de status).
Gosto de Alain de Botton e, quando confesso minha fraqueza, levo
assobios de colegas "highbrow",
que lêem Derrida e, claro, não
percebem Derrida. Fato: Botton
não é filósofo de academia. Mas,
pergunto, toda a filosofia deve ser
assunto de academia? Mais: toda a
filosofia deve ser uma busca desesperada de verdades inabaláveis, inalteráveis, que garantem
nossa sobrevivência intelectual
no vasto mundo das aparências?
A culpa é de Descartes, com certeza, homem magro e enfezado, que
morreu de tanto pensar e de tanto
apanhar (frio, apanhar frio) em
suas viagens pelo norte da Europa. Mas Descartes deixou seu vírus racionalista: a filosofia lida
com a verdade, não necessariamente com a vida. A filosofia serve para ensinar a descobrir verdades, não para ensinar a viver.
Alain de Botton discorda. Faz
bem. Depois de dois livros fracos
("Como Proust Pode Mudar Sua
Vida" e "As Consolações da Filosofia") e depois de breve passagem pela literatura de viagem ("A
Arte de Viajar"), "Status Anxiety"
visita Montaigne. Botton não é
Montaigne, e eu não enlouqueci
completamente. Mas Botton
aprendeu com Montaigne a lição
essencial: aprender a viver é a única preocupação de uma mente civilizada. Nossa inteligência vale o
que vale nossa vida.
"Status Anxiety" é, sem ironia,
um livro sobre o amor. Mas, como diria Raymond Carver em
suas histórias desoladas, de que
falamos quando falamos de
amor? Existem dois tipos. O primeiro, que todos conhecemos:
nossa busca desesperada pela alma gêmea que nos completa e, às
vezes, nos despedaça. A história
da arte é, na esmagadora maioria
dos casos, a história deste amor.
Mas existe outro tipo mais vergonhoso: nossa busca pelo amor do
mundo. Nossa doentia preocupação com o lugar que ocupamos no
mundo. A forma como somos
olhados pelos outros. Nossos
amigos, vizinhos. Mãe e pai. Sogra
e sogro. E aquele cunhado débil
que ganhou dinheiro na Bolsa e
despreza nossa vida ordeira e burocrática. Vivemos no palco, somos audiência e ator. E por quê?
Alain de Botton ensaia explicação freudiana, que depois abandona: procuramos ainda o amor
arcádico e perdido de nossos primeiros anos. Não, Alain, por aí
não, deixe Édipo em paz. Ele me
ouve. E então prefere a realidade:
no mundo ocidental, nossas necessidades básicas estão resolvidas. Comer, beber. Isso também.
Mas nós queremos mais do que
necessidades básicas. Não estamos interessados numa comparação fátua com nossos antepassados. Que interessa se nossos
avós viviam com um pão e uma
fatia de queijo num sótão fedorento duma aldeia miserável? Nós
queremos o que os outros querem. Nossa comparação não é feita com o passado, mas com o presente, com o futuro. Nossa inveja
é isso: desejar uma vida que pode
ser nossa e que deve ser nossa. As
teologias tradicionais prometiam
vida depois da morte. Mas quem
arrisca? Quem deseja aceitar resignadamente uma vida de privação para cair no abismo negro do
esquecimento eterno? Nada depois do pano, tudo deste lado do
pano. Por isso investimos cada
vez mais em nosso mérito. Nosso
dinheiro é a medida de nossa alma. E quando falhamos, carregamos o peso de nosso fracasso e de
nossa vergonha. Nas sociedades
tradicionais, o berço definia nosso destino. Injusto, sem dúvida.
Hoje, o berço define o início de todas as injustiças. O que fazemos
define o que somos, e o que somos não depende da crença existencialista e infantil, "après" Sartre, de que os seres humanos jogam sua vida em escolhas radicalmente livres. Nossos destinos não
estão apenas em nossas mãos. Repousam, trêmulos, nas mãos trêmulas do talento arbitrário que
temos ou não temos, da sorte que
aparece ou desaparece, da disposição de nosso chefe, da mulher
de nosso chefe, do amante da mulher de nosso chefe.
Chega. Alain de Botton aconselha terapêutica adequada. Não é
retórica de auto-ajuda. Nenhum
otimismo para consolar donas-de-casa. É lembrança fatal de nosso fim fatal. A morte. Podemos
dominar nossa ansiedade pelo
exercício da razão: filtrar o juízo
dos outros sobre nós e nosso juízo
sobre os outros. E então dizer: não
somos tão maus assim e os outros
não são tão bons assim. Schopenhauer "dixit". Ou podemos mergulhar na arte ou na boêmia, o nível estético que Kierkegaard julgava insuficiente porque insuficientemente o viveu. Mas o dado
último deve ser o primeiro. Vamos morrer. Os outros nos acompanham numa única classe. E não
queremos acordar um dia, como
Ivan Ilych no romance de Tolstói,
recordados dessa certeza: nossas
máscaras são pó quando nos confrontamos com pó.
No meio da loucura moderna, a
morte é uma companheira gentil.
Por isso encho meu copo numa
festa de ocasião e respondo como
sei e posso. Sou jornalista, sou
contabilista, sou tenista. Que importa? Sei, como sempre soube,
que as respostas são nada quando
a vida é minha e a morte é nossa.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online.
E-mail:
jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
STATUS ANXIETY. Autor: Alain de
Botton. Editora: Pantheon (em inglês).
Quanto: R$ 89, em média (320 págs.).
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