São Paulo, sábado, 19 de fevereiro de 2005

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LIVROS

ENSAIO

Autor examina a origem da ansiedade causada pela opinião dos outros

Em "Status Anxiety", Alain de Botton visita Montaigne

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Filme conhecido: entro numa festa, alguém apresenta alguém. Primeiros sorrisos, primeira pergunta. "O que você faz?" Peço desculpa, preciso de uma bebida. Dupla. E meu nome? Não quer saber meu nome? Minha mundividência, sapiência, sensibilidade e sanidade? Não, apenas meu trabalho. Meu trabalho é meu cartão identitário. Minha conta bancária é marca de minha excelência moral. Então respondo. Minha resposta é avaliada por critérios produtivos. No final, meu apartamento, meu carro, meu salário e meu escritório são processados na cabeça meritocrática de quem calcula tudo e avalia tudo. E agora, podemos conversar?
Não, não podemos. Podemos ler Alain de Botton em "Status Anxiety" (ansiedade de status). Gosto de Alain de Botton e, quando confesso minha fraqueza, levo assobios de colegas "highbrow", que lêem Derrida e, claro, não percebem Derrida. Fato: Botton não é filósofo de academia. Mas, pergunto, toda a filosofia deve ser assunto de academia? Mais: toda a filosofia deve ser uma busca desesperada de verdades inabaláveis, inalteráveis, que garantem nossa sobrevivência intelectual no vasto mundo das aparências? A culpa é de Descartes, com certeza, homem magro e enfezado, que morreu de tanto pensar e de tanto apanhar (frio, apanhar frio) em suas viagens pelo norte da Europa. Mas Descartes deixou seu vírus racionalista: a filosofia lida com a verdade, não necessariamente com a vida. A filosofia serve para ensinar a descobrir verdades, não para ensinar a viver.
Alain de Botton discorda. Faz bem. Depois de dois livros fracos ("Como Proust Pode Mudar Sua Vida" e "As Consolações da Filosofia") e depois de breve passagem pela literatura de viagem ("A Arte de Viajar"), "Status Anxiety" visita Montaigne. Botton não é Montaigne, e eu não enlouqueci completamente. Mas Botton aprendeu com Montaigne a lição essencial: aprender a viver é a única preocupação de uma mente civilizada. Nossa inteligência vale o que vale nossa vida.
"Status Anxiety" é, sem ironia, um livro sobre o amor. Mas, como diria Raymond Carver em suas histórias desoladas, de que falamos quando falamos de amor? Existem dois tipos. O primeiro, que todos conhecemos: nossa busca desesperada pela alma gêmea que nos completa e, às vezes, nos despedaça. A história da arte é, na esmagadora maioria dos casos, a história deste amor. Mas existe outro tipo mais vergonhoso: nossa busca pelo amor do mundo. Nossa doentia preocupação com o lugar que ocupamos no mundo. A forma como somos olhados pelos outros. Nossos amigos, vizinhos. Mãe e pai. Sogra e sogro. E aquele cunhado débil que ganhou dinheiro na Bolsa e despreza nossa vida ordeira e burocrática. Vivemos no palco, somos audiência e ator. E por quê?
Alain de Botton ensaia explicação freudiana, que depois abandona: procuramos ainda o amor arcádico e perdido de nossos primeiros anos. Não, Alain, por aí não, deixe Édipo em paz. Ele me ouve. E então prefere a realidade: no mundo ocidental, nossas necessidades básicas estão resolvidas. Comer, beber. Isso também. Mas nós queremos mais do que necessidades básicas. Não estamos interessados numa comparação fátua com nossos antepassados. Que interessa se nossos avós viviam com um pão e uma fatia de queijo num sótão fedorento duma aldeia miserável? Nós queremos o que os outros querem. Nossa comparação não é feita com o passado, mas com o presente, com o futuro. Nossa inveja é isso: desejar uma vida que pode ser nossa e que deve ser nossa. As teologias tradicionais prometiam vida depois da morte. Mas quem arrisca? Quem deseja aceitar resignadamente uma vida de privação para cair no abismo negro do esquecimento eterno? Nada depois do pano, tudo deste lado do pano. Por isso investimos cada vez mais em nosso mérito. Nosso dinheiro é a medida de nossa alma. E quando falhamos, carregamos o peso de nosso fracasso e de nossa vergonha. Nas sociedades tradicionais, o berço definia nosso destino. Injusto, sem dúvida. Hoje, o berço define o início de todas as injustiças. O que fazemos define o que somos, e o que somos não depende da crença existencialista e infantil, "après" Sartre, de que os seres humanos jogam sua vida em escolhas radicalmente livres. Nossos destinos não estão apenas em nossas mãos. Repousam, trêmulos, nas mãos trêmulas do talento arbitrário que temos ou não temos, da sorte que aparece ou desaparece, da disposição de nosso chefe, da mulher de nosso chefe, do amante da mulher de nosso chefe.
Chega. Alain de Botton aconselha terapêutica adequada. Não é retórica de auto-ajuda. Nenhum otimismo para consolar donas-de-casa. É lembrança fatal de nosso fim fatal. A morte. Podemos dominar nossa ansiedade pelo exercício da razão: filtrar o juízo dos outros sobre nós e nosso juízo sobre os outros. E então dizer: não somos tão maus assim e os outros não são tão bons assim. Schopenhauer "dixit". Ou podemos mergulhar na arte ou na boêmia, o nível estético que Kierkegaard julgava insuficiente porque insuficientemente o viveu. Mas o dado último deve ser o primeiro. Vamos morrer. Os outros nos acompanham numa única classe. E não queremos acordar um dia, como Ivan Ilych no romance de Tolstói, recordados dessa certeza: nossas máscaras são pó quando nos confrontamos com pó.
No meio da loucura moderna, a morte é uma companheira gentil. Por isso encho meu copo numa festa de ocasião e respondo como sei e posso. Sou jornalista, sou contabilista, sou tenista. Que importa? Sei, como sempre soube, que as respostas são nada quando a vida é minha e a morte é nossa.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online.
E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
STATUS ANXIETY. Autor: Alain de Botton. Editora: Pantheon (em inglês). Quanto: R$ 89, em média (320 págs.).


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