|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DRAUZIO VARELLA
Os botequins de Diadema
O povo diz que a cachaça faz
do covarde homem valente.
Uma pesquisa encomendada pela
Prefeitura de Diadema, cidade
com 350 mil habitantes na Grande São Paulo, apenas confirmou o
dito popular.
Em 2000, Diadema iniciou um
mapeamento da criminalidade
no município, que, no ano anterior, havia liderado com folga o
ranking de violência no Estado:
103 homicídios em cada 100 mil
habitantes.
O estudo mostrou que 60% dos
assassinatos e 45% das queixas de
agressão contra mulheres ocorriam entre 23h e 6h. E que a maioria dos crimes acontecia em bairros com concentração alta de bares e botequins. Os dados levaram
os representantes do poder público a criar uma lei municipal a fim
de limitar o horário de venda de
bebidas alcoólicas: bar nenhum
poderia comercializá-las depois
das 23h.
Seis meses antes da implementação da lei, aprovada por 83% da
população em pesquisa de opinião pública, funcionários municipais visitaram a maioria dos estabelecimentos que serviam bebidas alcoólicas para discutir as medidas que seriam adotadas e as
penalidades em caso de desobediência. Numa segunda visita,
realizada três meses mais tarde,
os proprietários assinaram um
documento no qual declaravam
estar cientes das restrições e das
conseqüências legais da contravenção.
A nova lei, implementada em
julho de 2002, foi amplamente divulgada à comunidade e aos donos de bares e seus freqüentadores. A campanha de informação
incluiu reuniões com líderes comunitários, distribuição de folhetos explicativos, reportagens em
jornais e anúncios em programas
de rádio.
Sabendo que de leis bem-intencionadas o inferno anda cheio,
que muitas delas não "pegam" e
ainda fornecem subsídios para a
corrupção, Diadema pôs em prática um programa de fiscalização
rigoroso: diariamente a Defesa
Social seleciona uma unidade,
composta por pessoas escolhidas
em vários locais da cidade, para
atuar em conjunto com a Guarda
Civil Municipal nas fiscalizações e
na aplicação de penalidades aos
contraventores.
Com a finalidade de evitar vazamento de informações, a área a
ser inspecionada é mantida em
segredo até que a unidade de fiscalização esteja reunida para o
início das atividades, que ocorre
às 23h. Para complementar, um
disque-denúncia foi posto à disposição dos cidadãos, e são realizadas reuniões periódicas com donos de bares, líderes comunitários
e membros da Guarda Municipal
para discutir problemas relacionados com o cumprimento da lei.
As penalidades para os infratores não são de ordem criminal,
mas de ordem administrativa. A
cada reincidência, elas se tornam
mais rigorosas: advertência na
primeira violação, multa na segunda, multa e suspensão temporária da licença na terceira, revogação da licença na quarta.
As estatísticas demonstram que
os atendimentos em serviços de
emergência médica, os homicídios
e as queixas de violência contra
mulheres diminuíram progressivamente. A comparação do número de assassinatos ocorridos
antes e depois de julho de 2002
mostrou que, em 24 meses, deixaram de acontecer 273 mortes na
cidade, ou seja, 11 por mês. As
agressões contra mulheres diminuíram um pouco menos: nove
casos a menos em cada mês. Diadema saiu da lista das cidades
mais violentas do Estado.
Não foram publicados resultados sobre os efeitos indiretos da
regulamentação das vendas de álcool na redução do número de
atropelamentos e mortes no trânsito.
Pesquisas de opinião recentes
revelam que 98% dos residentes
conhecem a lei e que 93% estão de
acordo com ela. Surpreendentemente, os próprios donos de bares
se declaram satisfeitos com a mudança, que lhes trouxe mais tranqüilidade no trabalho.
Os números levantados pela
Prefeitura de Diadema merecem
crédito: foram validados em estudos independentes realizados pelos médicos Ronaldo Laranjeira e
Sérgio Duailibi, da Unifesp, e por
pesquisadores do Pire (Pacific Institute for Research and Evaluation), ONG internacional dedicada ao estudo da prevenção a danos e mortes ocasionados pelo uso
indevido do álcool.
O abuso de álcool está definitivamente ligado à violência urbana, como demonstram inúmeros
estudos e a experiência de todos
nós. Não há dúvida de que o consumo de drogas ilícitas também:
os usuários dependentes roubam
para poder comprá-las, e os traficantes corrompem as autoridades
e se matam para garantir acesso à
clientela cativa. Mas maconha,
cocaína, ecstasy ou heroína não
costumam disparar acessos de fúria assassina em seus consumidores, ao contrário do álcool, que o
faz por mera ação farmacológica
nos centros cerebrais de indivíduos suscetíveis. Ladrões experientes se recusam a sair para assaltar ao lado de comparsas que
fumaram maconha ou crack. No
entanto tomar uma ou duas doses de conhaque para "criar coragem" é prática comum entre eles.
É evidente que as medidas adotadas em Diadema talvez não
possam ser aplicadas em cidades
maiores e mais complexas sem
que haja modificações radicais,
mas elas demonstram, pela primeira vez entre nós, que reduzir
os níveis de violência urbana associada ao álcool não é necessariamente privilégio de países ricos. O binômio álcool-violência
não precisa ser aceito de forma
passiva pela sociedade.
O exemplo de Diadema é único,
simples fruto da vontade política
de seus dirigentes e do apoio da
população. Como diz o médico
Ronaldo Laranjeira, "não exigiria muita imaginação entender
que as experiências de Diadema
trazem esperança e orientação a
outras comunidades no Brasil interessadas em prevenir atos de
violência".
Texto Anterior: Vitrine Estrangeira Próximo Texto: Artes plásticas: Mostra no museu d'Orsay traça fio neo-impressionista Índice
|