São Paulo, quinta, 19 de março de 1998

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ANÁLISE
Qualidade da obra pode ser definida pelas leis do mercado

SILVIANO SANTIAGO
especial para a Folha

O Salão do Livro de Paris, à semelhança da Feira de Frankfurt e das Bienais do Livro que são realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, simboliza muitas coisas.
A principal delas é o atestado de maioridade da edição e comercialização do livro no campo da indústria cultural globalizada. Por ser o país homenageado este ano, o Brasil recebe por ricochete uma certidão de maioridade regional. O livro deixa de ser o primo pobre do cinema, do teatro e das artes plásticas, para se alçar à condição de mercadoria nada artesanal, cujo valor é certificado principalmente pelas leis do mercado.
O livro deixa de ser um objeto de estimação cujo peso e circulação eram determinados pelo valor aferido a ele pelos pares do autor e pelas instituições culturais.
Quanto ao julgamento de qualidade, a crítica literária tinha algo a dizer, também a Universidade e ainda o sempre criticado mecenato do Estado nacional, por meio das formas de subsídio (o escritor se sustenta como funcionário público e as editoras têm o preço do papel reduzido, por exemplo).
O livro tinha valor de troca e se encaixava como um bibelô numa coleção particular guardada em sala própria, o escritório. Pode-se acrescentar que o livro tinha características de objeto de classe, que os salões e bienais -exemplos gritantes da sociedade de consumo- passam a questionar.
Uma leitura, ainda que superficial do catálogo impresso na França e distribuído no Brasil, atesta o peso mercadológico que o livro-mercadoria terá no Salão e o desprezo de alguns participantes pelas instâncias de mecenato público no campo literário.
Paulo Coelho, autor de inquestionável e merecido sucesso internacional de venda, é o único que viaja a convite da sua editora francesa. Todos os demais -e seremos quase 40- viajamos à custa ou do Estado brasileiro ou do Estado francês. Uns serão piores e o outro, melhor? Um representa o presente e os outros, o passado?
O gesto arrogante do editor francês (ele não traduz necessariamente a atitude dos que são envolvidos por ele) destoa do espírito que sempre cercou o Salão do Livro de Paris e o torna semelhante a vários outros realizados, com grande sucesso, nos EUA.
Nesse país, os famigerados coquetéis de hora marcada para começar e terminar há muito substituíram as "maçantes" mesas redondas e as discussões propriamente sóciopolíticas e culturais em torno do livro.
Um dry martini bem gelado e alguns canapés, com som de jazz ao fundo, deslocaram o livro do seu velho hábitat, o campo das idéias, e jogaram-no para o campo bem-humorado das piadas, dos "gossips" e do tatibitate social. Desse ambiente é que surgem as significativas vendas de direitos autorais. Ali se respiram o lucro das várias empresas envolvidas e o sucesso do livro e do seu autor.
Dentro dessa perspectiva, obrigatoriamente mercadológica e globalizada, tipicamente norte-americana, o livro também perde alguns outros valores que o cercavam. O principal deles é a credibilidade e o peso que lhe eram conferidos pela tradição artística e cultural do país de origem.
Como o samba que trazia a voz do morro, sim senhor, ele levava contribuições regionais importantes para fomentar o melhor e mais justo diálogo entre nações.
Dois exemplos nacionais, necessariamente simplificados. No caso dos primórdios do modernismo, o livro recém-publicado resgatava e dava nome a heranças culturais que tinham sido rejeitadas e recalcadas pelo processo de ocidentalização por que passamos desde a colonização.
É o caso de "Macunaíma", de Mário de Andrade. No caso do romance nordestino dos anos 30, a novidade literária dava continuidade a importantes discussões sobre o projeto sóciopolítico e econômico da nação no contexto da civilização ocidental. É o caso de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos.
Em outras palavras, naquela época o livro tinha por detrás um intelectual empenhado. O intelectual empenhado, por sua vez, tinha por detrás um projeto de país. O projeto utópico de país, por sua vez, tinha por detrás um campo aberto de discussão que era suplementado e enriquecido pela acolhida do livro pelo leitor, pela imprensa e pelas instituições do saber.
No modelo vitorioso e americano de feira do livro, o autor perde grande parte do seu glamour intelectual, cedendo o lugar às negociações a serem feitas em seu nome por agentes literários junto a editores do mundo inteiro.
Ele perde, por assim dizer, a voz empenhada. O agente vende o livro, esse livro, desconhecendo a carga propriamente cultural que carrega ou possa a vir carregar. Para o agente literário vale mais, muito mais esse outro livro que já vem sobrecarregado por uma inteligente publicidade de alta voltagem emotiva e que, por isso, atingirá em cheio o sistema nervoso do indivíduo carente. O livro deverá manter um tête-à-tête com um leitor individualista e autocentrado.
Para compensar tais exageros da indústria cultural globalizada, os organizadores do atual Salão do Livro de Paris optaram por guardar apenas algumas das características das novas feiras de livro. Tomando como exemplo a programação distribuída à imprensa, tem-se a impressão de que o modelo do Salão do Livro deixou de ser por demais culturalista, não chegando a ser por demais americanizado.
É híbrido. Guarda muita coisa das novas feiras de livro do mundo neoliberal e absorve as características das feiras de livro especializadas, que cercam as reuniões de sociedades do saber.
O modelo híbrido do Salão de Paris reduz o número de coquetéis e de solenidades oficiais ou extra-oficiais, aumentando o número de mesas-redondas, com temas altamente pertinentes para a atualização do público francês (e internacional) no tocante ao conhecimento que têm da história do Brasil e do Brasil moderno.
Os escritores convidados serão menos caras e sorrisos (alguns necessariamente o serão, pois a vaidade é uma característica pessoal que se ajusta mais ao modelo americanizado do que ao velho modelo parisiense), poderão ser menos figuras decorativas e mais intelectuais empenhados em explicar o que existe por detrás e dentro dos livros brasileiros.
Tudo isso vai depender da eficiência a ser demonstrada pelos organizadores do Salão do Livro, do grau de politização do atual público francês e, principalmente, da habilidade e humildade dos escritores brasileiros convidados. No mais, festa é festa. Luta é luta.


Silviano Santiago é ensaísta, escritor e professor de literatura, autor, entre outros livros, de "Nas Malhas da Letra" e "Uma Literatura nos Trópicos"


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