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ANÁLISE
Qualidade da obra pode ser definida pelas leis do mercado
SILVIANO SANTIAGO
especial para a Folha
O Salão do Livro de Paris, à semelhança da Feira de Frankfurt e
das Bienais do Livro que são realizadas no Rio de Janeiro e em São
Paulo, simboliza muitas coisas.
A principal delas é o atestado de
maioridade da edição e comercialização do livro no campo da indústria cultural globalizada. Por
ser o país homenageado este ano,
o Brasil recebe por ricochete uma
certidão de maioridade regional.
O livro deixa de ser o primo pobre
do cinema, do teatro e das artes
plásticas, para se alçar à condição
de mercadoria nada artesanal, cujo valor é certificado principalmente pelas leis do mercado.
O livro deixa de ser um objeto de
estimação cujo peso e circulação
eram determinados pelo valor aferido a ele pelos pares do autor e
pelas instituições culturais.
Quanto ao julgamento de qualidade, a crítica literária tinha algo a
dizer, também a Universidade e
ainda o sempre criticado mecenato do Estado nacional, por meio
das formas de subsídio (o escritor
se sustenta como funcionário público e as editoras têm o preço do
papel reduzido, por exemplo).
O livro tinha valor de troca e se
encaixava como um bibelô numa
coleção particular guardada em
sala própria, o escritório. Pode-se
acrescentar que o livro tinha características de objeto de classe,
que os salões e bienais -exemplos
gritantes da sociedade de consumo- passam a questionar.
Uma leitura, ainda que superficial do catálogo impresso na França e distribuído no Brasil, atesta o
peso mercadológico que o livro-mercadoria terá no Salão e o
desprezo de alguns participantes
pelas instâncias de mecenato público no campo literário.
Paulo Coelho, autor de inquestionável e merecido sucesso internacional de venda, é o único que
viaja a convite da sua editora francesa. Todos os demais -e seremos quase 40- viajamos à custa
ou do Estado brasileiro ou do Estado francês. Uns serão piores e o
outro, melhor? Um representa o
presente e os outros, o passado?
O gesto arrogante do editor francês (ele não traduz necessariamente a atitude dos que são envolvidos por ele) destoa do espírito
que sempre cercou o Salão do Livro de Paris e o torna semelhante a
vários outros realizados, com
grande sucesso, nos EUA.
Nesse país, os famigerados coquetéis de hora marcada para começar e terminar há muito substituíram as "maçantes" mesas redondas e as discussões propriamente sóciopolíticas e culturais
em torno do livro.
Um dry martini bem gelado e alguns canapés, com som de jazz ao
fundo, deslocaram o livro do seu
velho hábitat, o campo das idéias,
e jogaram-no para o campo
bem-humorado das piadas, dos
"gossips" e do tatibitate social.
Desse ambiente é que surgem as
significativas vendas de direitos
autorais. Ali se respiram o lucro
das várias empresas envolvidas e o
sucesso do livro e do seu autor.
Dentro dessa perspectiva, obrigatoriamente mercadológica e
globalizada, tipicamente norte-americana, o livro também perde
alguns outros valores que o cercavam. O principal deles é a credibilidade e o peso que lhe eram conferidos pela tradição artística e cultural do país de origem.
Como o samba que trazia a voz
do morro, sim senhor, ele levava
contribuições regionais importantes para fomentar o melhor e mais
justo diálogo entre nações.
Dois exemplos nacionais, necessariamente simplificados. No caso
dos primórdios do modernismo, o
livro recém-publicado resgatava e
dava nome a heranças culturais
que tinham sido rejeitadas e recalcadas pelo processo de ocidentalização por que passamos desde a
colonização.
É o caso de "Macunaíma", de
Mário de Andrade. No caso do romance nordestino dos anos 30, a
novidade literária dava continuidade a importantes discussões sobre o projeto sóciopolítico e econômico da nação no contexto da
civilização ocidental. É o caso de
"Vidas Secas", de Graciliano Ramos.
Em outras palavras, naquela
época o livro tinha por detrás um
intelectual empenhado. O intelectual empenhado, por sua vez, tinha por detrás um projeto de país.
O projeto utópico de país, por sua
vez, tinha por detrás um campo
aberto de discussão que era suplementado e enriquecido pela acolhida do livro pelo leitor, pela imprensa e pelas instituições do saber.
No modelo vitorioso e americano de feira do livro, o autor perde
grande parte do seu glamour intelectual, cedendo o lugar às negociações a serem feitas em seu nome por agentes literários junto a
editores do mundo inteiro.
Ele perde, por assim dizer, a voz
empenhada. O agente vende o livro, esse livro, desconhecendo a
carga propriamente cultural que
carrega ou possa a vir carregar.
Para o agente literário vale mais,
muito mais esse outro livro que já
vem sobrecarregado por uma inteligente publicidade de alta voltagem emotiva e que, por isso, atingirá em cheio o sistema nervoso
do indivíduo carente. O livro deverá manter um tête-à-tête com
um leitor individualista e autocentrado.
Para compensar tais exageros da
indústria cultural globalizada, os
organizadores do atual Salão do
Livro de Paris optaram por guardar apenas algumas das características das novas feiras de livro. Tomando como exemplo a programação distribuída à imprensa,
tem-se a impressão de que o modelo do Salão do Livro deixou de
ser por demais culturalista, não
chegando a ser por demais americanizado.
É híbrido. Guarda muita coisa
das novas feiras de livro do mundo
neoliberal e absorve as características das feiras de livro especializadas, que cercam as reuniões de sociedades do saber.
O modelo híbrido do Salão de
Paris reduz o número de coquetéis
e de solenidades oficiais ou extra-oficiais, aumentando o número de mesas-redondas, com temas
altamente pertinentes para a atualização do público francês (e internacional) no tocante ao conhecimento que têm da história do Brasil e do Brasil moderno.
Os escritores convidados serão
menos caras e sorrisos (alguns necessariamente o serão, pois a vaidade é uma característica pessoal
que se ajusta mais ao modelo americanizado do que ao velho modelo parisiense), poderão ser menos
figuras decorativas e mais intelectuais empenhados em explicar o
que existe por detrás e dentro dos
livros brasileiros.
Tudo isso vai depender da eficiência a ser demonstrada pelos
organizadores do Salão do Livro,
do grau de politização do atual público francês e, principalmente, da
habilidade e humildade dos escritores brasileiros convidados. No
mais, festa é festa. Luta é luta.
Silviano Santiago é ensaísta, escritor e professor
de literatura, autor, entre outros livros, de "Nas
Malhas da Letra" e "Uma Literatura nos Trópicos"
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