São Paulo, Sexta-feira, 19 de Março de 1999
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Diretores de publicidade preparam longas


MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha

Digamos que um jovem de 20 anos quisesse fazer cinema, em 1980, no Brasil da Embrafilme, pistolagem e tráfico de influências. Quais caminhos deveriam ser percorridos para o êxito desse projeto primo da extravagância?
Comprar uma câmera de vídeo profissional. Então, produzir "institucionais" (vídeos para empresas), inserir quadros produzidos com amigos em programas de TV, fazer clipes de bandas brasileiras, realizar o primeiro comercial, mudar o equipamento para cinema, montar uma produtora de publicidade, faturar muitos cobres e, com a sobra de negativos, realizar alguns curtas.
Com a grana no caixa, equipe, equipamento, experiência, estúdios próprios e muitos contatos no meio, o pedágio está livre para a realização do primeiro longa-metragem. Óbvio demais? O publicitário virou cineasta ou o cineasta se virou na publicidade?
Pois essa é a trajetória da O2 Filmes, a maior produtora de publicidade do Brasil -que produz 300 comerciais por ano (260 dias de filmagens)- e de seus fundadores, Fernando Meirelles, 43, e Paulo Morelli, 43, que começam a filmar, na próxima segunda-feira, "Domésticas" e preparam as produções dos longas "Pedro Malasartes" e "Cidade de Deus". E foi uma contravenção inocente que detonou o processo.

Tese de mestrado
Em 1979, Meirelles atravessou a fronteira do Paraguai com duas câmeras U-Matic; na época, a última geração em câmera portátil profissional de vídeo.
"Comprei o equipamento para fazer minha tese de graduação. Ninguém tinha essa câmera. Mesmo as TVs não a tinham. Fiz o contrabando pessoalmente. Fui para o Japão e desci no Paraguai. Vendi a metade do equipamento para o Teatro Oficina, pagando o meu", diz Meirelles.
Depois da contravenção, ele montou a produtora de vídeo independente Olhar Eletrônico com Morelli, Marcelo Machado, Dario Vizeu e outros.
A produtora realizou programas em horários alternativos na TV Gazeta, Abril Vídeo e muitos "institucionais".
Depois, Meirelles dirigiu programas para a TV Cultura ("Rá-Tim-Bum") e Rede Globo ("Comédia da Vida Privada"). O primeiro comercial da Olhar foi ainda em vídeo, para a Telesp.

Longas
A agência DPZ despejou uma lista de encomendas, e a produtora passou a trabalhar com película. Alguns antigos membros saíram. Criou-se, em 1992, a O2 Filmes, que atualmente tem dois estúdios, 12 diretores (seis deles na co-irmã 022, aberta há dois anos para criar "jovens talentos") e venceu, 11 vezes, o prêmio "Profissionais do Ano". Agora, os longas:
1. "Domésticas" é uma adaptação do espetáculo teatral homônimo de Renata Melo, que esteve em cartaz, em São Paulo, nos últimos meses de 1998.
Será dirigido por Fernando Meirelles e Nando Olival, 35. No elenco, atores da peça e desconhecidos que passaram por uma maratona de testes.
Meirelles já dirigiu, com Fabrizia Pinto, 37, o longa "Menino Maluquinho 2 - A Aventura" (ficou em cartaz em julho de 1998). Olival dirigiu os premiados curtas "Um Dia Logo Depois um Outro" e "E No Meio Passa um Trem".
2. "Pedro Malasartes" é baseado na lenda do homem que enganou a morte. Chamado de "road movie caipira" pela produção, o filme será dirigido por Paulo Morelli, que tem no currículo a direção do curta "Lápide". No elenco, estarão Fernanda Montenegro, Osmar Prado e Selton Mello.
3. "Cidade de Deus" é baseado no romance sensação de 1997, de Paulo Lins, sobre as gerações do tráfico que se sucederam na meio favela, meio condomínio Cidade de Deus, no Rio.
Orçado em R$ 3 milhões, as filmagens começam em agosto de 2000. O roteiro é de Bráulio Montovani e Paulo Lins. Fernando Meirelles, que falou à Folha, irá dirigi-lo também.

Folha - O cinema está definitivamente nos planos de sua produtora?
Fernando Meirelles -
Nos próximos dez anos, faremos longas e continuaremos a fazer publicidade. Somos a maior produtora de publicidade do Brasil, quatro vezes maior que a segunda colocada, em faturamento. Não podemos parar de fazer publicidade.
Folha - Como foi essa decisão?
Meirelles -
Começamos com oficinas de roteiro e de pesquisa das leis de incentivo. Existem três pessoas, numa salinha, trabalhando integralmente em projetos. Fizemos curtas, no ano passado, que ganharam todos os prêmios. Deu um ânimo na gente. Caiu a ficha: "Poxa, a gente sabe fazer essa coisa de cinema".
Folha - O curta é uma passagem obrigatória para quem quer fazer um longa?
Meirelles -
O curta é um jeito de começar. Não sei se precisaria. É uma coisa barata que pagamos com o nosso dinheiro.
"Domésticas" foi pensado num raciocínio óbvio. Vamos fazer um longa em quatro noites, como se fossem quatro curtas, e gastar R$ 80 mil. Já estamos num filme de R$ 680 mil, com fotografia de Lauro Escorel e produção de Ana Soares. Ainda é um longa barato. Inicialmente, era tudo em um local, quatro cenários em cada um dos nossos dois estúdios, para economizarmos maquiador, transporte etc. Filmaríamos simultaneamente. Agora, o projeto ficou grande. Usaremos uma semana de estúdio, e o resto é externa (locações fora de estúdio).
Folha - "Domésticas" e "Cidade de Deus" são histórias de excluídos, como "Central do Brasil". Isso é uma nova tendência do cinema brasileiro?
Meirelles -
Não pensamos em "Central". É uma coincidência. Isso é o Brasil. Os excluídos são mais interessantes que o Brasil que vive a reboque dos economistas que ficam pautando nossa vida. É uma outra lógica. Ninguém explica essa lógica da Cidade de Deus e a maneira de organizar essa sociedade.
Folha - Você continuará fazendo filmes também fora de sua produtora?
Meirelles -
No segundo semestre, vou dirigir "Se Eu Fosse Você" para a Vídeo Filmes, a mesma produtora de "Central". É uma comédia romântica com Alexandre Borges e Malu Mader.
Ele é um publicitário, e ela é uma atriz. O papel feminino e masculino entram em discussão e, de um dia para o outro, eles acordam com os corpos trocados.
Folha - Você vai trabalhar com muitos atores negros. Vocês fizeram testes?
Meirelles -
Não existem muitos atores negros. Para "Cidade de Deus" vou ter de formar. O elenco será enorme. Já estamos em contato com grupos de teatro dos morros cariocas. Em junho e julho, vou para lá selecionar o elenco. Vou passar um ano preparando aulas e ensaios.
Folha - Vai ser filmado na própria Cidade de Deus?
Meirelles -
La é um pouco barra-pesada, apesar de Paulo Lins (autor da história que morou no condomínio) dizer que ele garante. Encurtei a história. Pegamos apenas dois personagens que irão conduzi-la, num formato meio documentário.
Acho que vou filmar em 16 mm ou em vídeo; algum formato leve.
Folha - Paulo Lins vai participar do roteiro?
Meirelles -
Ele vai entrar quando o roteiro estiver acabado. O que vale é a experiência dele. Ele morou lá, conhece aquilo como poucos, as falas, as expressões.
Ele tem mais de 30 fitas cassetes com entrevistas. O grande barato é o dialetozinho deles.
Folha - Foi difícil a transição entre vídeo e cinema?
Meirelles -
No vídeo, improvisa-se mais. O cinema tem fotógrafo, assistente, segundo assistente... Tudo é pesado. Parece uma tecnologia do século 19, lentes em baús de ferro, como uma ferrovia a vapor. Mas não tem jeito, a imagem é boa. A câmera de vídeo dá uma maior mobilidade.
O que se faz instantâneo, no vídeo, demora duas horas no cinema. Vídeo é um sonho. A atuação melhora muito. A resposta é quente.


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