São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 2002

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CINEMA/ESTRÉIA

Delírio em Hollywood

Divulgação
Cena de "Cidade dos Sonhos", do americano David Lynch, também diretor de "Veludo Azul", "A Estrada Perdida" e "História Real"



Em "Cidade dos Sonhos", Lynch discute a perda de identidade e mistura o real com o imaginário


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A reação do espectador ao sair da "Cidade dos Sonhos" pode ser de espanto: será que eu me distraí, perdi algum momento essencial da trama e agora já não sei quem é quem nessa história? Ou pode ser de desconfiança: querem que eu engula esse bricabraque sem pé nem cabeça como se fosse obra de arte.
Em ambas as hipóteses (não são as únicas possíveis), o sentimento que se tem ao final da sessão não elimina todos os outros que acontecem durante os 145 minutos de projeção, onde cada cena, cada palavra e cada gesto nos conduzem a um mistério. E cada cena, palavra ou gesto é imediatamente compreensível.
Vejamos: um desastre automobilístico acontece em Mulholland Drive, justamente no momento em que uma mulher vai ser assassinada. Ela escapa razoavelmente ilesa, mas, tendo perdido a memória, não sabe quem é nem o que aconteceu. Dará a si mesma o nome de Rita (após ver um cartaz de Rita Hayworth em "Gilda").
Rita se verá na casa de Camilla Rhodes, jovem pretendente a atriz, que irá ajudá-la a desvendar o mistério de sua identidade.
Mais tarde saberemos que Rita na verdade se chama Camilla e que Camilla se chama Betty, se não me falha a memória. De todo modo isso não tem importância por ora, mesmo porque o espectador se verá soterrado por uma série de acontecimentos não menos ambíguos: um diretor de cinema perseguido por (talvez) gângsteres, um teste para Camilla (Betty), figuras ameaçadoras que perseguem Rita (ou Camilla), um assassino profissional, alguém que se denomina Cowboy etc.
Pode-se fazer, mentalmente, a tentativa de remontar esse filme tentando encontrar-lhe a cronologia correta. É inútil. "Cidade dos Sonhos" nos precipita em um território perigoso, onde real e imaginário são, a rigor, indistinguíveis, inseparáveis, onde não é possível saber, nunca, o que está acontecendo, o que está sendo filmado, o que está sendo sonhado ou imaginado.
Mesmo nas cenas mais banais, David Lynch cerca seus atores de um halo de mistério, como se os imaterializasse para melhor mostrar que não estamos vendo pessoas de carne e osso, e sim algo apenas parecido com ela, isto é, um filme (exemplo: a chegada da candidata a atriz em Hollywood -sim, escusa dizer, tudo isso se passa em Hollywood).
Somos em seguida projetados no mistério de Rita e nos que a cercam. David Lynch então conduz seu filme como um mistério hitchcockiano (um dos temas recorrentes de Hitchcock é a busca da identidade e seus perigos). Num café, as duas moças topam com uma garçonete chamada Diane. Ela tem o nome estampado no crachá (bem à moda americana). Esse nome evoca algo para Rita. Talvez seu nome seja esse.
Não importa se é ou não, mas o efeito que a cena tem sobre o espectador, imediatamente levado a questionar o que significa um nome. Que diferença existe no fato de um crachá mencionar A, B ou C? Quem é essa pessoa que nunca vimos antes e que provavelmente não voltaremos a ver? E, se nosso contato com ela é assim tão sumário, por que devemos conhecer-lhe o nome?
Da mesma forma, que nome dar a isso que vemos: alucinação, sonho, realidade, filme? Há um pouco de tudo, talvez porque o cinema seja, em parte, uma arte que materializa o imaterial, que transforma idéias em coisas reais. É a isso que nos acostumamos. É isso que esperamos de um filme.
Lynch parece propor algo diferente: imaterializar o material, devolvê-lo ao estágio de idéia, o que consegue ao nos envolver na suposição de estarmos diante de uma ficção tradicional (com a segurança e o conforto de sabermos que vemos uma história).
Esses movimentos opostos desconcertam o espectador, tirando-lhe o que mais preza, a certeza. Porque é num mundo de plena incerteza que nos projeta esse filme, em que a angústia dos personagens parece se dissipar junto com suas identidades (ou perda de identidades) e se transferir para o público.
"Cidade dos Sonhos" afirma David Lynch como herdeiro legítimo (isto é, inventivo, não imitador) dos grandes mestres do cinema de mistério (Hitchcock e Buñuel sobretudo), que fizeram questões como quem somos nós, o que é real, o que é o cinema sempre presentes em sua obra.
Por fim, mas não por último: também está em cartaz "Cine Majestic", de Frank Darabont, outro filme que faz da perda de identidade seu tema central. Talvez seja coincidência, talvez sinal de uma crise de identidade profunda que os EUA estão vivendo.


Cidade dos Sonhos
Mulholland Drive
    
Direção: David Lynch
Produção: EUA/França, 2001
Com: Justin Theroux, Naomi Watts, Laura Harring
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Jardim Sul, Metrô Santa Cruz, Sala UOL e circuito




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