São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 2000


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GASTRONOMIA

Ruflando as asas, sacudindo as penas

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Sempre que sou entrevistada em trabalhos de aspirantes a cozinheiros e quetais, escuto a pergunta recorrente: "Por que não escreve outro livro? Por que não escreve semanalmente? Sua coluna é tão fácil...". Com um pouco de raiva, disfarço, mas a vontade é responder: "Não posso, não tenho tempo, passo a vida a rasgar papéis e arrumar livros em suas respectivas pilhas". O que é a pura verdade.
Ninguém acreditaria, no entanto, que, para dar aos leitores uma simples coluna quinzenal, transformei minha casa, há muito tempo, no cenário de "Os Pássaros", de Hitchcock. As aves são os livros, que ocupam todos os espaços e desvãos e léguas de estantes no térreo. Ali, da frente de batalha, elas (as aves) sobem as escadas, param no patamar, agrupam-se em "pães" e "Elizabeth David", continuam subindo.
Na estante do quarto vazio de meus filhos, enturmam-se em "dicionários", "antologias", "enciclopédias", "Londres", "comida natural" e "grandes chefs".
Percebendo os armários de roupa desocupados, entraram sem cerimônia e, na primeira porta, brandas, coloridas, pousaram em "Brasiliana", "a história da comida no Brasil", "o olhar do outro", "cadernos de avós", minhas e dos outros.
São, no entanto, aves traiçoeiras como todo mundo sabe... e sobravam duas portas. Atentas, ruflando as asas, sacudindo as penas, infiltraram-se por lá em pastas com excertos de revistas.
No quarto duplo de casal, aninharam-se numa estante de parede inteira, simpáticas, convivendo muito bem, gárrulas, apesar das etnias diferentes. São indianas, provençais, árabes, francesas. É claro que alcançaram a cabeceira, desceram para a gaveta e, vergonha das vergonhas, entraram debaixo da cama como revistas, aves de arribação, revistas que passam e se vão.
Há o baú da espera, dos não-lidos, que piam baixinho, chamando, a mesinha dos atlas, dos mapas e dos caminhos fascinantes trilhados pela comida.
Bem, esses são os pássaros já estabelecidos à vontade nos seus galhos. Na minha cabeça, no entanto, escuto de vez em vez uns trinados histéricos que só se resolvem no one-click da Amazon ou na corrida às livrarias.
E os ninhos vão se formando, entrelaçando-se, por motivos que aparecem sem ser chamados pelas pautas.
Jantávamos uma noite dessas num restaurante japonês do bairro. No menu, lulas. Só que, naquele dia, estavam em falta. Só tinham o corpo da lula, comunicaram com certo desgosto, como se houvéssemos pedido frango e só nos pudessem oferecer os pés. Estranhamos, mas acontece que os frequentadores de lá só comem as perninhas...!!!
Na Liberdade, há um lugar onde se come um prato feito só dos nervos do músculo transformados em geléia saborosa. Eu estou nessa, num desejo grávido de comer o que nunca me ofereceram antes, pontas de orelhas, dentros de ossos, redes que seguram vísceras, as essências puras. A pilha dos livros de comidas exóticas aumenta, cambaleia, soturna, sangrenta, à espera de ser transformada em coluna.
Outro ninho que começou ontem e já alcançou proporções inéditas é o de "anais da domesticidade". Acreditem ou não, mulheres de todo o mundo estão querendo voltar para casa, dentes rangendo, unhas coçando para limpar o "lar". Querem de novo a sensação de rainhas da casa, querem lavar roupa até que, alva, seja dependurada no varal com cheiro de jasmim. Querem se deitar no chão de cerâmica escovado e caçar a última barata. Precisam de um dia para cozinhar arroz, feijão, bolo de carne e pudim de leite e servir com mesa posta e vaso com flor. Ardem por cerzir meias de algodão com aquele ovo de madeira.
O último livro doméstico que saiu foi "Home Comforts, the Science of Keeping House", de Cheryl Mendelson, Scribner. Não é uma Martha Stewart querendo combinar o fundo dos ladrilhos da piscina com o papel de carta. Não. Quer trabalhar duro, dispensar a academia de ginástica, e o livro já voa com suas próprias asas, best seller de peso.
Nessa veia doméstica, imediatamente comecei a empilhar antigos manuais de noivas -quando para minha surpresa- me saltaram aos olhos uns poemas de Sylvia Plath, mulher dos anos 50, leitora do "Ladies Home Journal", a revista mais belamente doméstica já feita no mundo e disfarçada como ela só. Pressionava as mulheres a crescer em beleza, sabedoria e artes domésticas, conciliar profissão e filhos. Sylvia, perfeccionista, deu no que deu, lindos poemas, fama eterna e cabeça no forno. Entra para a nova pilha junto com o marido "Ted Hughes", "diários" e "biografias".
Hei de destrinchar esse assunto e volto logo. No momento, preciso transferir uma aves para o guarda-malas antes que me comam os olhos.


E-mail - ninahort@uol.com.br



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