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NOITE ILUSTRADA
Histórias de um underground brasileiro
ERIKA PALOMINO
ERNANI nasceu em 4 de maio.
Foi engraxate, gari, menino de
rua. Dormiu debaixo de um banco na praça da República. Adolescente, tentou ser cantor. Tinha a
voz boa, mas ser homossexual lhe
emperrou a carreira.
Tentou ainda ser bailarino, mas
nada. Então quis mudar. Aos 20 e
poucos, Ernani decidiu transformar seu corpo. Nascia Andréia de
Maio.
NAQUELA época, anos 70, quanto mais litros de silicone tivesse
um travesti mais poderoso ele
era, mais respeito conquistava
em seu meio. E Andréia se encheu de silicone. Fez a famosa
viagem a Paris e, na volta, abriu
com Valdemir Tenório de Albuquerque, o Val, a boate Val-Improviso, lendária casa de shows
de travestis na Marquês de Itu. O
Val-Improviso e o Val-Show, na
Frederico Steidel, ajudaram a escrever a história do underground
paulistano, com seus shows e sua
frenética atividade, que às vezes
chegava até o meio-dia. Cazuza
foi um dos frequentadores e, não
raro, a noite terminava com o
cantor ao violão (o Val-Improviso entrou até em letra de música)
ou com um prosaico churrasco.
ANDRÉIA se tornara uma espécie de mãe de todas. Poderosa,
protegia e defendia os travestis
das intempéries da vida noturna.
Quando abriu sua própria boate,
a Prohibidu's, na Amaral Gurgel,
passou a abrigar então esse segmento que, muitas vezes, é marginal até mesmo dentro da comunidade gay (muitos clubes noturnos não deixam entrar os travestis).
Na Prohibidu's, Andréia misturou e aceitou todo mundo, em
meio a garçons nus que fizeram o
sucesso da casa e chamaram a
atenção da cidade. Sem falar nos
shows, claro, sempre no meio da
madrugada (4h, 4h30), e o povo
da noite saía então de seus trabalhos ou de outros clubes para terminar lá na Prohibidu's, já com
dia claro, e o centro da cidade
pulsando, avançando até 9h da
manhã.
TUDO funcionava sob o olhar
sempre vigilante e severo de Andréia de Maio. Carismática, sentada em sua cadeira na porta, ao
lado do fiel companheiro, o pequinês Al Capone, ela sabia orquestrar aquilo ali como ninguém, com seus perigos e atrativos -o fascinante apelo da mondanité. Bandidos, mocinhas,
drags, semidrags, clubbers, DJs,
travas e boys; descolados, famosos, herdeiros milionários e artistas completando o casting.
UMA das noites mais absurdas
da Prohibidu's foi a do aniversário de dez anos de carreira da famosa Gabriella Bionda, hoje cartomante, chamando-se por "Mãe
Gabi" (quem a viu na última terça
no "Muvuca"?).
Então em sua fase mais glamourosa, com um aplique louro
tipo Madonna, Gabi recebia seus
convidados, emocionada, ao lado
da companheira Lu Moreira, a
Lu, das Mercenárias, a banda de
rock dos 80. Era dezembro de 97,
e quem estava em São Paulo era a
fotógrafa norte-americana Nan
Goldin, justo quem?!, a rainha do
demi-monde nova-iorquino. Levada por um grupo de amigos
que se integrou com simpatia à
festiva atmosfera daquela noite,
Nan Goldin se sentiu em casa e se
moveu com familiaridade no ambiente. Para falar a verdade, sequer foi notada pelas meninas ou
pela homenageada. Nan Goldin
fotografou Lu e Gabi, Andréia e
os variadíssimos personagens
que subiram a escadaria da boate
naquela madrugada.
Andréia cuidava e dava amparo. Servia de sentinela, de guardiã
daquele mundo perigoso e cheio
de regras veladas. Mas também
tinha lá seus problemas, claro.
Envolveu-se, apaixonada, com
um rapaz viciado em drogas que,
depois de uma discussão, disparou nela seis tiros. Andréia (que
não bebia nem usava drogas) foi
atingida na mão, nos braços e nas
pernas. Sofreu 13 cirurgias. Nunca mais foi a mesma. Ganhou um
olhar tristonho e distante, quase
ausente.
ALGUMAS coisas pouca gente
sabia da vida de Andréia de Maio.
Às vezes era vista sentada no banco da praça da República, onde
costumava dormir quando criança. Ficava ali sozinha, com o amigo Al Capone, pensando.
Negociante de carros, ajudava
também instituições de caridade
(muitas doações foram feitas para a casa de travestis de Brenda
Lee) e favelas.
Tinha insônia e costumava passar muitas madrugadas conversando com Carlos Alberto de Policastro, a Kaká di Polly, a quem
considerava um irmão.
Andréia de Maio era ainda, segundo diz Kaká, "um pai-de-santo maravilhoso".
NA noite de Kaká no Rainha Vitória, bar/restaurante gay-friendly do largo do Arouche, na
semana passada, Andréia foi homenageada num show/entrevista, por seus 50 anos, completados
em 4 de maio último.
Agradeceu aos amigos e subiu
ao palco para cantar "Paralelas" e
"Manhã de Setembro". Sem avisar ninguém, Andréia fazia uma
espécie de despedida da noite.
Cansou. Depois de tantos anos de
estrada, preparava-se para se mudar para o sítio que comprou e foi
reformando em Ribeirão Pires.
Disse que sentia mais prazer em
ver as estrelas à noite, lá de seu sítio, e conversar com os caseiros,
que em "ouvir bobagens e ver as
pessoas se destruindo em troca
de um sonho que nem se sabe onde vai dar".
ASSIM, hoje, nesta sexta-feira,
quando o povo baixasse na Prohibidu's ou ligasse para sua casa
na Vila Mariana, Andréia não estaria mais aqui.
Mas antes disso, também sem
avisar ninguém, arrumou alguém
para cuidar de Al Capone (que já
está velhinho, com 17 anos) e se
internou para tirar um pouco do
silicone de seu corpo. Foi operada
então na terça-feira. Voltou da
anestesia e tomou sopa. Mas passou mal durante a madrugada e,
pela manhã, entrou em coma,
praticamente sem assistência, na
tal "clínica". Andréia de Maio
morreu na mesma terça-feira. Foi
velada durante a madrugada de
quarta para quinta no Araçá e foi
enterrada ontem ao meio-dia no
cemitério da Consolação.
UMA história ímpar e, ao mesmo
tempo, uma história comum no
Brasil, Andréia de Maio, que nasceu e morreu em maio, já é um
mito na vida de São Paulo.
E-mail: palomino@uol.com.br
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