UOL


São Paulo, segunda-feira, 19 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Em algum lugar do passado

Atlântida , uma imensa ilha logo além (para aqueles cujo ponto de referência era o Mediterrâneo) dos Pilares de Hércules (que é como os gregos antigos chamavam o estreito de Gibraltar), foi, cerca de 10 mil anos atrás, o lar de uma civilização avançadíssima, até que, entre terremotos e inundações, desapareceu subitamente, tragada num único dia e noite pelo mar. Ou, pelo menos, isso é o que Platão contou nos seus diálogos "Timeu" e "Crítias".
Entre a época quando o grosso das pessoas conhecia, no máximo, os arredores de sua aldeia e a nossa, na qual não há mais praticamente um canto inexplorado no planeta, o desconhecimento permitiu a nossos ancestrais imaginar reinos e terras maravilhosas e várias das lendas decorrentes serviram de incentivo para viagens reais que, levando a descobertas verdadeiras, resultaram no mundo globalizado. Que a Atlântida, o Eldorado ou o reino do Preste João tenham sido exilados dos mapas contemporâneos não impede, no entanto, que outro tipo de explorador continue a procurar paragens tão ou mais fantásticas, só que em algum lugar do passado.
Embora o futuro, como se sabe, a Deus pertença, muito do que aconteceu segue sendo uma incógnita e, a rigor, o que mais tem mudado nos últimos cem ou 200 anos é o passado, pois, enquanto alguns mitos foram postos de lado, outros, cuja credibilidade já foi mínima, converteram-se, como é o caso da Babilônia ou da Assíria bíblicas e, até certo ponto, da Tróia homérica, em fatos. Tabuletas de barro que, com suas inscrições enigmáticas, jazeram esquecidas durante milênios debaixo da areia dos desertos, foram recuperadas e decifradas. Línguas cujo derradeiro falante nativo morreu antes que nascesse o bisavô do bisavô do ancião mais idoso são agora lidas e traduzidas, presenteando-nos com obras-primas arcaicas entre as quais a epopéia de Guilgâmesh é apenas a mais conhecida.
Se arqueólogos, escavando pontos sugeridos por um livro antigo ou um palpite feliz, peneirando cuidadosamente toneladas de terra e areia em busca de um artefato qualquer, foram até o presente os responsáveis pelas principais revelações, há outras categorias de especialistas que vêm ajudando a desfazer as brumas do tempo, por exemplo, os linguistas e os geneticistas.
Assim, desde que, na segunda metade do século 18, William Jones, um jovem juiz britânico enviado por seu governo à Índia, resolveu aprender o sânscrito e constatou que tanto a gramática quanto o léxico dessa língua assemelhavam-se aos do grego e do latim, o estudo comparativo dos idiomas transformou-se em recurso central para desenovelar o percurso emaranhado dos povos. E, depois que Watson e Crick, nos anos 50 do século passado, descobriram que é através de uma longuíssima fita molecular embutida no âmago de todos os seres vivos que cada qual passa suas características à geração seguinte, esta outra tabuleta (que, há quem o diga, também era de barro antes que alguém soprasse nela a vida) vem ficando, a cada dia que passa, mais legível.
Entre as mensagens misteriosas veiculadas pelo DNA (ácido desoxirribonucléico), encontra-se a possibilidade de que, em torno de 70 mil anos atrás, nossa espécie tenha entrado num "gargalo" ("bottleneck") populacional durante o qual ela se reduziu a menos de 10 mil indivíduos adultos. Quanto havia então de diferença entre as diversas populações humanas se apagou quase completamente e todos nós descendemos dos poucos sobreviventes de uma possível catástrofe que, fazendo as temperaturas despencarem abruptamente, inaugurou anos de um verdadeiro inverno nuclear, danificando profundamente ecossistemas inteiros e levando nossa espécie à beira da extinção.
A catástrofe em questão parece ter sido ocasionada por uma megaerupção vulcânica, a do monte Toba, na ilha de Sumatra. Essa erupção, centenas de vezes mais potente que a do Krakatoa (1883), ou a do Tambora, que, em 1815, causou um "ano sem verão" ou a da ilha grega de Santorini (século 17 a. C.), que os historiadores responsabilizam pelo fim da civilização que, anterior à da Grécia clássica, legou-nos as inscrições em Linear A e B, ejetou tanta cinza que esta cobriu a Índia e, dispersa na atmosfera, bloqueou anos a fio boa parte dos raios solares.
O que teria explodido nesses dias remotos é algo conhecido como supervulcão, uma espécie de bolha gigante de magma que, oculta sob a terra, não assume necessariamente o aspecto montanhoso dos vulcões convencionais. Existe um que costuma entrar em plena atividade a cada 700 mil anos e, preocupantemente, anda meio atrasado, pois não o faz há 740 mil. Ele fica debaixo do parque de Yellowstone, nos EUA. Houve um outro, localizado no estreito que separa Sumatra de Java (e, quem sabe, causador da separação), cuja erupção, no ano 535, teria desencadeado mudanças climáticas tão graves que, na sua sequência, vieram colheitas malsucedidas, pestes, crises econômicas e reviravoltas sociais a milhares de quilômetros de distância, na Ásia Central, na Europa e no Oriente Médio.
Como a história de todas as sociedades que existiram tem sido também ou sobretudo a dos terremotos e erupções vulcânicas, a das inundações, dos desastres ecológicos e das epidemias, a lição do mito de Atlântida talvez seja justamente a de que a humanidade sempre foi, se tanto, uma coadjuvante de sua própria história.


Texto Anterior: Música: Idealista, Ben Harper exibe versatilidade
Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: Atriz Wendy Hiller morre aos 90 anos
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.