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NELSON ASCHER
Em algum lugar do passado
Atlântida , uma imensa
ilha logo além (para aqueles
cujo ponto de referência era o Mediterrâneo) dos Pilares de Hércules (que é como os gregos antigos
chamavam o estreito de Gibraltar), foi, cerca de 10 mil anos
atrás, o lar de uma civilização
avançadíssima, até que, entre terremotos e inundações, desapareceu subitamente, tragada num
único dia e noite pelo mar. Ou,
pelo menos, isso é o que Platão
contou nos seus diálogos "Timeu"
e "Crítias".
Entre a época quando o grosso
das pessoas conhecia, no máximo, os arredores de sua aldeia e a
nossa, na qual não há mais praticamente um canto inexplorado
no planeta, o desconhecimento
permitiu a nossos ancestrais imaginar reinos e terras maravilhosas
e várias das lendas decorrentes
serviram de incentivo para viagens reais que, levando a descobertas verdadeiras, resultaram no
mundo globalizado. Que a Atlântida, o Eldorado ou o reino do
Preste João tenham sido exilados
dos mapas contemporâneos não
impede, no entanto, que outro tipo de explorador continue a procurar paragens tão ou mais fantásticas, só que em algum lugar
do passado.
Embora o futuro, como se sabe,
a Deus pertença, muito do que
aconteceu segue sendo uma incógnita e, a rigor, o que mais tem
mudado nos últimos cem ou 200
anos é o passado, pois, enquanto
alguns mitos foram postos de lado, outros, cuja credibilidade já
foi mínima, converteram-se, como é o caso da Babilônia ou da
Assíria bíblicas e, até certo ponto,
da Tróia homérica, em fatos. Tabuletas de barro que, com suas
inscrições enigmáticas, jazeram
esquecidas durante milênios debaixo da areia dos desertos, foram recuperadas e decifradas.
Línguas cujo derradeiro falante
nativo morreu antes que nascesse
o bisavô do bisavô do ancião mais
idoso são agora lidas e traduzidas, presenteando-nos com
obras-primas arcaicas entre as
quais a epopéia de Guilgâmesh é
apenas a mais conhecida.
Se arqueólogos, escavando pontos sugeridos por um livro antigo
ou um palpite feliz, peneirando
cuidadosamente toneladas de
terra e areia em busca de um artefato qualquer, foram até o presente os responsáveis pelas principais revelações, há outras categorias de especialistas que vêm ajudando a desfazer as brumas do
tempo, por exemplo, os linguistas
e os geneticistas.
Assim, desde que, na segunda
metade do século 18, William Jones, um jovem juiz britânico enviado por seu governo à Índia, resolveu aprender o sânscrito e
constatou que tanto a gramática
quanto o léxico dessa língua assemelhavam-se aos do grego e do
latim, o estudo comparativo dos
idiomas transformou-se em recurso central para desenovelar o
percurso emaranhado dos povos.
E, depois que Watson e Crick, nos
anos 50 do século passado, descobriram que é através de uma longuíssima fita molecular embutida
no âmago de todos os seres vivos
que cada qual passa suas características à geração seguinte, esta
outra tabuleta (que, há quem o
diga, também era de barro antes
que alguém soprasse nela a vida)
vem ficando, a cada dia que passa, mais legível.
Entre as mensagens misteriosas
veiculadas pelo DNA (ácido desoxirribonucléico), encontra-se a
possibilidade de que, em torno de
70 mil anos atrás, nossa espécie
tenha entrado num "gargalo"
("bottleneck") populacional durante o qual ela se reduziu a menos de 10 mil indivíduos adultos.
Quanto havia então de diferença
entre as diversas populações humanas se apagou quase completamente e todos nós descendemos
dos poucos sobreviventes de uma
possível catástrofe que, fazendo as
temperaturas despencarem
abruptamente, inaugurou anos
de um verdadeiro inverno nuclear, danificando profundamente ecossistemas inteiros e levando
nossa espécie à beira da extinção.
A catástrofe em questão parece
ter sido ocasionada por uma megaerupção vulcânica, a do monte
Toba, na ilha de Sumatra. Essa
erupção, centenas de vezes mais
potente que a do Krakatoa (1883),
ou a do Tambora, que, em 1815,
causou um "ano sem verão" ou a
da ilha grega de Santorini (século
17 a. C.), que os historiadores responsabilizam pelo fim da civilização que, anterior à da Grécia clássica, legou-nos as inscrições em
Linear A e B, ejetou tanta cinza
que esta cobriu a Índia e, dispersa
na atmosfera, bloqueou anos a fio
boa parte dos raios solares.
O que teria explodido nesses
dias remotos é algo conhecido como supervulcão, uma espécie de
bolha gigante de magma que,
oculta sob a terra, não assume necessariamente o aspecto montanhoso dos vulcões convencionais.
Existe um que costuma entrar em
plena atividade a cada 700 mil
anos e, preocupantemente, anda
meio atrasado, pois não o faz há
740 mil. Ele fica debaixo do parque de Yellowstone, nos EUA.
Houve um outro, localizado no
estreito que separa Sumatra de
Java (e, quem sabe, causador da
separação), cuja erupção, no ano
535, teria desencadeado mudanças climáticas tão graves que, na
sua sequência, vieram colheitas
malsucedidas, pestes, crises econômicas e reviravoltas sociais a
milhares de quilômetros de distância, na Ásia Central, na Europa e no Oriente Médio.
Como a história de todas as sociedades que existiram tem sido
também ou sobretudo a dos terremotos e erupções vulcânicas, a
das inundações, dos desastres
ecológicos e das epidemias, a lição
do mito de Atlântida talvez seja
justamente a de que a humanidade sempre foi, se tanto, uma coadjuvante de sua própria história.
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