São Paulo, sábado, 19 de maio de 2007

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Caldeira investiga criação do samba

Jorge Caldeira lança "A Construção do Samba", que critica visões sobre "autenticidade" e valoriza o papel do mercado

Para escritor, primeiros sambistas eram "os caras modernos", que formataram o gênero na nascente indústria cultural


Rodrigo Paiva - 3.mai.2007/Folha Imagem
Jorge Caldeira, autor de "Mauá", lança livro com duas obras realizadas na década de 80, sobre formação do samba e Noel Rosa


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA

"A Construção do Samba", de Jorge Caldeira (ed. Mameluco, 222 págs), é uma reunião de duas obras do autor realizadas nos anos 80. A primeira tem como base uma dissertação de mestrado, defendida na escola de sociologia da USP, que foi despida de protocolos acadêmicos para ganhar versão mais fluente. A segunda, "Noel Rosa - De Costas para o Mar", foi lançada em 1982 pela Brasiliense, sem ter recebido novas edições.
Caldeira fala a seguir sobre os dois trabalhos, que investigam a consolidação do samba como gênero voltado para o mercado, num período de duas décadas, a partir de 1917, quando Donga gravou "Pelo Telefone".
 

FOLHA - Em relação a outras histórias sobre a formação do samba, o que há de diferente em seu livro?
JORGE CALDEIRA -
Bom, o que ele tem de comum com os outros é reconhecer que a formação do samba como gênero de cultura urbana, de disco, vamos dizer assim, é a raiz da indústria cultural no Brasil. O que ele tem de muito diferente dos outros é o seguinte: em geral, valorizam-se os primeiros representantes do samba porque eram gente das camadas populares, "dos terreiros", representavam algo de "autêntico" do povo brasileiro. Eu considero que eles eram tudo isso, mas acho que isso é o de menos. O que é perene não é o folclore, mas a tecnologia cultural ouvida nessa criação. Eles eram os caras modernos da época. Eles encararam o que havia de desafio tecnológico do tempo, que era fazer uma música para um instrumento tecnológico, que tinha sido criado -a gravação de disco. Essa tecnologia implicava mudar toda música ao redor. Uma coisa é música de festa, outra coisa é você fazer uma música curta, que caiba naquele tempo do disco, que conte uma história para uma pessoa que está comprando o disco, portanto, numa situação de mercado.

FOLHA - O livro trata da formação do samba num período de duas décadas, da primeira gravação de "Pelo Telefone" às duas outras feitas pelo Donga. O que mudou?
CALDEIRA -
Se você ouve a primeira gravação hoje acha que não é samba, é uma marchinha estranha, um maxixe... Quando ouve a segunda, de 20 anos depois, você fala: "Ah, isso é samba", ou seja, a segunda já tinha tudo aquilo que o nosso ouvido hoje identifica como samba. Aqueles caras tinham consciência do mercado, eles estavam lá, usavam aquilo, sabiam usar a indústria cultural para reforçar o seu papel de portadores de uma música que era importante para todo mundo. Todos eles viveram lá dentro da indústria cultural. O Pixinguinha criou o conjunto regional, uma orquestração que foi sendo sendo experimentada e desenvolvida aos poucos. Logo depois o Sinhô acrescentou algo: o marketing. Ele se apresentava como o "rei do samba". Ele estava na rua fazendo o papel de uma figura que não existia no folclore, que é o compositor popular. Essa é uma figura que só tem sentido vendendo partitura, vendendo música. Mas esses caras que vieram das coisas tradicionais e foram para o mercado acabaram rebaixados na crítica que só valoriza o "autêntico" e o tradicional, fazendo crer que mercado é coisa de gente branca esperta e que eles estavam fora disso.

FOLHA - Que crítica é essa?
CALDEIRA -
O José Ramos Tinhorão, por exemplo. Ele acha que o analfabetismo dos sambistas era uma virtude. E não é verdade. A tecnologia deles é que era virtude.

FOLHA - Como o Noel Rosa entra nessa história?
CALDEIRA -
O Noel pega a obra dessa geração que o precedeu e refina. Noel refina essa figura do narrador malandro, que não é o malandro empírico, como se enganam alguns. Refina a voz que canta baixinho, que canta malandra, que canta, vamos dizer, nos entremeios. E ele tinha a visão de que seu ouvinte é o anônimo, o comprador do disco. A idéia de ser compositor popular se consolida com Noel. Não é pouca coisa isso, embora hoje a gente ache natural.

FOLHA - Qual o papel da era Vargas nesse processo?
CALDEIRA -
O Getúlio tinha a percepção de que essa cultura nascente de massas era importante para as ações políticas. Desde sempre começou a mexer com isso. Ele regulamentou a propaganda no rádio, o que fez com que as rádios tivessem dinheiro para contratar cantoras e criar um novo mercado. Ele mostrou ter um sentido claro de que o Estado deveria pegar aquela formatação livre que se criou no mercado e fazer uma coisa nova, a favor da pátria, a música de patriotada, cujo primeiro ícone foi "Aquarela do Brasil", que é de 1939.
Em vez de ser uma música cuja instrumentação está na mão do compositor, é uma música orquestrada por uma orquestra padrão, que é a Rádio Nacional, que era do Estado. Gente como o maestro Radamés Gnattali, por exemplo, criou essa orquestração com um luxo tal de produção que não seria qualquer pobre que poderia fazer aquilo. Criou uma versão oficial do samba. E, a partir daí, a evolução do samba de certa forma acabou.


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