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Caldeira investiga criação do samba
Jorge Caldeira lança "A Construção do Samba", que critica visões sobre "autenticidade" e valoriza o papel do mercado
Para escritor, primeiros sambistas eram "os caras modernos", que formataram o gênero na nascente indústria cultural
Rodrigo Paiva - 3.mai.2007/Folha Imagem
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Jorge Caldeira, autor de "Mauá", lança livro com duas obras realizadas na década de 80, sobre formação do samba e Noel Rosa |
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA
"A Construção do Samba", de
Jorge Caldeira (ed. Mameluco,
222 págs), é uma reunião de
duas obras do autor realizadas
nos anos 80. A primeira tem como base uma dissertação de
mestrado, defendida na escola
de sociologia da USP, que foi
despida de protocolos acadêmicos para ganhar versão mais
fluente. A segunda, "Noel Rosa
- De Costas para o Mar", foi lançada em 1982 pela Brasiliense,
sem ter recebido novas edições.
Caldeira fala a seguir sobre os
dois trabalhos, que investigam
a consolidação do samba como
gênero voltado para o mercado,
num período de duas décadas, a
partir de 1917, quando Donga
gravou "Pelo Telefone".
FOLHA - Em relação a outras histórias sobre a formação do samba, o
que há de diferente em seu livro?
JORGE CALDEIRA - Bom, o que ele
tem de comum com os outros é
reconhecer que a formação do
samba como gênero de cultura
urbana, de disco, vamos dizer
assim, é a raiz da indústria cultural no Brasil. O que ele tem de
muito diferente dos outros é o
seguinte: em geral, valorizam-se os primeiros representantes
do samba porque eram gente
das camadas populares, "dos
terreiros", representavam algo
de "autêntico" do povo brasileiro. Eu considero que eles eram
tudo isso, mas acho que isso é o
de menos. O que é perene não é
o folclore, mas a tecnologia cultural ouvida nessa criação. Eles
eram os caras modernos da
época. Eles encararam o que
havia de desafio tecnológico do
tempo, que era fazer uma música para um instrumento tecnológico, que tinha sido criado -a
gravação de disco. Essa tecnologia implicava mudar toda
música ao redor. Uma coisa é
música de festa, outra coisa é
você fazer uma música curta,
que caiba naquele tempo do
disco, que conte uma história
para uma pessoa que está comprando o disco, portanto, numa
situação de mercado.
FOLHA - O livro trata da formação
do samba num período de duas décadas, da primeira gravação de "Pelo Telefone" às duas outras feitas
pelo Donga. O que mudou?
CALDEIRA - Se você ouve a primeira gravação hoje acha que
não é samba, é uma marchinha
estranha, um maxixe... Quando
ouve a segunda, de 20 anos depois, você fala: "Ah, isso é samba", ou seja, a segunda já tinha
tudo aquilo que o nosso ouvido
hoje identifica como samba.
Aqueles caras tinham consciência do mercado, eles estavam lá, usavam aquilo, sabiam
usar a indústria cultural para
reforçar o seu papel de portadores de uma música que era
importante para todo mundo.
Todos eles viveram lá dentro da
indústria cultural. O Pixinguinha criou o conjunto regional,
uma orquestração que foi sendo sendo experimentada e desenvolvida aos poucos. Logo
depois o Sinhô acrescentou algo: o marketing. Ele se apresentava como o "rei do samba". Ele
estava na rua fazendo o papel
de uma figura que não existia
no folclore, que é o compositor
popular. Essa é uma figura que
só tem sentido vendendo partitura, vendendo música. Mas esses caras que vieram das coisas
tradicionais e foram para o
mercado acabaram rebaixados
na crítica que só valoriza o "autêntico" e o tradicional, fazendo crer que mercado é coisa de
gente branca esperta e que eles
estavam fora disso.
FOLHA - Que crítica é essa?
CALDEIRA - O José Ramos Tinhorão, por exemplo. Ele acha
que o analfabetismo dos sambistas era uma virtude. E não é
verdade. A tecnologia deles é
que era virtude.
FOLHA - Como o Noel Rosa entra
nessa história?
CALDEIRA - O Noel pega a obra
dessa geração que o precedeu e
refina. Noel refina essa figura
do narrador malandro, que não
é o malandro empírico, como se
enganam alguns. Refina a voz
que canta baixinho, que canta
malandra, que canta, vamos dizer, nos entremeios. E ele tinha
a visão de que seu ouvinte é o
anônimo, o comprador do disco. A idéia de ser compositor
popular se consolida com Noel.
Não é pouca coisa isso, embora
hoje a gente ache natural.
FOLHA - Qual o papel da era Vargas
nesse processo?
CALDEIRA - O Getúlio tinha a
percepção de que essa cultura
nascente de massas era importante para as ações políticas.
Desde sempre começou a mexer com isso. Ele regulamentou
a propaganda no rádio, o que
fez com que as rádios tivessem
dinheiro para contratar cantoras e criar um novo mercado.
Ele mostrou ter um sentido claro de que o Estado deveria pegar aquela formatação livre que
se criou no mercado e fazer
uma coisa nova, a favor da pátria, a música de patriotada, cujo primeiro ícone foi "Aquarela
do Brasil", que é de 1939.
Em vez de ser uma música
cuja instrumentação está na
mão do compositor, é uma música orquestrada por uma orquestra padrão, que é a Rádio
Nacional, que era do Estado.
Gente como o maestro Radamés Gnattali, por exemplo,
criou essa orquestração com
um luxo tal de produção que
não seria qualquer pobre que
poderia fazer aquilo. Criou uma
versão oficial do samba. E, a
partir daí, a evolução do samba
de certa forma acabou.
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