|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Memória
Benedetti fez de sua obra libelo pela reconstrução da realidade
O escritor uruguaio de "A Trégua" morreu anteontem, aos 88, em Montevidéu
REYNALDO DAMAZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Além de ter sido um escritor múltiplo -com
mais de 80 livros publicados entre poesia, ficção, ensaio e teatro-, o uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) foi
também um intelectual profundamente engajado com as
questões políticas de seu tempo, coisa rara nos dias de hoje.
Militante de esquerda, crítico da influência dos EUA na
história latino-americana e exilado político por mais de dez
anos, fez de sua vasta obra um
libelo humanista pelas possibilidades de reconstrução da realidade a partir de relações pessoais justas e fraternas.
Benedetti estreou como poeta com "La Víspera Indeleble"
(a véspera indelével), de 1945, e
ficou conhecido com "Poemas
de la Oficina", em 1956, obtendo excelente recepção de público e crítica. Na época, já era intensa sua atuação jornalística
como redator, diretor e membro do conselho editorial do semanário "Marcha" e das revistas literárias "Marginalia" e
"Número", respectivamente.
Com o golpe de Estado de junho de 1973, no Uruguai, o escritor partiu para o exílio na Argentina e, posteriormente, no
Peru e em Cuba, retornando ao
país somente em 1983.
Lirismo e reflexão
Seus poemas são elaborados
com uma mistura equilibrada
de lirismo e reflexão, em longos
discursos que falam do espanto
diante do mundo em dissolução, da memória que tenta resgatar um liame perdido com a
identidade do sujeito, das malhas do poder e da ideologia entranhadas no cotidiano. Trata-se de uma poesia densa, de fôlego, porém marcada por uma
delicadeza extrema e uma depuração rigorosa que a distancia da exuberância metafórica
de um Neruda, poeta também
comprometido politicamente.
Foi na prosa, no entanto, que
Benedetti conquistou projeção
internacional, especialmente
com "A Trégua" (1960). Pegando carona no "boom" da literatura latino-americana -que
aglutinou sob a mesma rubrica
autores tão díspares quanto
Alejo Carpentier, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez,
Júlio Cortazar e Mario Vargas
Llosa-, Benedetti aborda a vida opaca, monótona, da classe
média uruguaia, apequenada
por uma sociedade opressiva.
O personagem central do romance, Martín Santomé, é um
burocrata cinquentão, viúvo e
desiludido, cuja vida se resume
à contagem regressiva para a
aposentadoria. Solitário e casmurro, não se dá bem com os filhos e não alimenta nenhuma
ilusão para o futuro, até que a
jovem tímida Laura Avellaneda
cruza seu caminho e os planos
mudam drasticamente.
Diferente do estilo de seu
conterrâneo e parceiro geracional Juan Carlos Onetti (1909-1994), a prosa de Benedetti carrega certa ironia e alguma crença, mesmo que nuançada, no
caráter transformador dos sentimentos. Há sempre uma
chance de reviravolta no enredo e a graça pode irromper no
lodaçal da melancolia.
REYNALDO DAMAZIO é editor e poeta, autor de
"Horas Perplexas" (Editora 34)
Texto Anterior: Diretor Ken Loach retorna otimista em longa com o ex-jogador Eric Cantona Próximo Texto: Repercussão Índice
|