São Paulo, terça-feira, 19 de maio de 2009

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Memória

Benedetti fez de sua obra libelo pela reconstrução da realidade

O escritor uruguaio de "A Trégua" morreu anteontem, aos 88, em Montevidéu

REYNALDO DAMAZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Além de ter sido um escritor múltiplo -com mais de 80 livros publicados entre poesia, ficção, ensaio e teatro-, o uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) foi também um intelectual profundamente engajado com as questões políticas de seu tempo, coisa rara nos dias de hoje.
Militante de esquerda, crítico da influência dos EUA na história latino-americana e exilado político por mais de dez anos, fez de sua vasta obra um libelo humanista pelas possibilidades de reconstrução da realidade a partir de relações pessoais justas e fraternas. Benedetti estreou como poeta com "La Víspera Indeleble" (a véspera indelével), de 1945, e ficou conhecido com "Poemas de la Oficina", em 1956, obtendo excelente recepção de público e crítica. Na época, já era intensa sua atuação jornalística como redator, diretor e membro do conselho editorial do semanário "Marcha" e das revistas literárias "Marginalia" e "Número", respectivamente.
Com o golpe de Estado de junho de 1973, no Uruguai, o escritor partiu para o exílio na Argentina e, posteriormente, no Peru e em Cuba, retornando ao país somente em 1983.

Lirismo e reflexão
Seus poemas são elaborados com uma mistura equilibrada de lirismo e reflexão, em longos discursos que falam do espanto diante do mundo em dissolução, da memória que tenta resgatar um liame perdido com a identidade do sujeito, das malhas do poder e da ideologia entranhadas no cotidiano. Trata-se de uma poesia densa, de fôlego, porém marcada por uma delicadeza extrema e uma depuração rigorosa que a distancia da exuberância metafórica de um Neruda, poeta também comprometido politicamente.
Foi na prosa, no entanto, que Benedetti conquistou projeção internacional, especialmente com "A Trégua" (1960). Pegando carona no "boom" da literatura latino-americana -que aglutinou sob a mesma rubrica autores tão díspares quanto Alejo Carpentier, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Júlio Cortazar e Mario Vargas Llosa-, Benedetti aborda a vida opaca, monótona, da classe média uruguaia, apequenada por uma sociedade opressiva.
O personagem central do romance, Martín Santomé, é um burocrata cinquentão, viúvo e desiludido, cuja vida se resume à contagem regressiva para a aposentadoria. Solitário e casmurro, não se dá bem com os filhos e não alimenta nenhuma ilusão para o futuro, até que a jovem tímida Laura Avellaneda cruza seu caminho e os planos mudam drasticamente.
Diferente do estilo de seu conterrâneo e parceiro geracional Juan Carlos Onetti (1909-1994), a prosa de Benedetti carrega certa ironia e alguma crença, mesmo que nuançada, no caráter transformador dos sentimentos. Há sempre uma chance de reviravolta no enredo e a graça pode irromper no lodaçal da melancolia.

REYNALDO DAMAZIO é editor e poeta, autor de "Horas Perplexas" (Editora 34)



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