São Paulo, quinta, 19 de junho de 1997.



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Tio Dave segue estilo de Hemingway na Itália

DAVID DREW ZINGG
no lago Maggiore, Itália

"Era limpo, gelado e bom."
(Ernest Hemingway)

O que um velho correspondente no exterior vai fazer quando sente que precisa recarregar sua bateria existencial? Cunhando um eufemismo, Joãozinho, como um dos mais famosos jornalistas do Brasil faz para colocar aquele litro a mais de gasolina aditivada em seu tanque?
Vou lhe contar, amigão, como os ricos e famosos do mundo das letras tropicais reabastecem sua fonte de inspiração: seguem o exemplo daquele jornalista dos jornalistas, profundo conhecedor do mundo e da vida (e, às vezes, um pouco farto deles), tio Dave.
E você aí, na última fileira da classe, provavelmente está querendo perguntar: o que é que o velho e profundo conhecedor etc., etc., tio Dave, faz, afinal?
Boa pergunta. Agora, finalmente, estamos chegando ao "xis" da pergunta da vida.
E a resposta é: assim como uma geração de escritores mais jovens buscam o exemplo de tio Dave, o próprio tio Dave busca o exemplo de outra geração de escrivinhadores que conheciam os segredos do bom viver. E, aqui nos "palazzos" assombrados da famosa região dos lagos italianos, tio Dave conta com uma lista bem respeitável de antecessores, podes crer.
Dê uma olhada só na gangue de gente boa que passou pelo lago Maggiori um pouco antes deste jornalista:
Primeiro veio Catulo, depois Virgílio, seguido pelos dois Plínios, por Dante Alighieri e, depois, Leonardo da Vinci. Os próximos foram o esquadrão francês, liderado por Montaigne, Rousseau e o pequeno gigante Napoleão -acompanhado de Josephine.
À medida que as notícias sobre o lago foram vazando para o mundo, todo mundo começou a querer tomar parte na festa.
O velho piadista Goethe veio para cá e estragou um verão inteiro com suas queixas e seus resmungos. Pouco depois foi a vez de lord Byron, o amante que pôs a Itália no mapa para gerações de jovens e palpitantes donzelas inglesas, seguido por Rossini, Heine, Balzac, Flaubert e Dickens (que não queria, ou não sabia como, deixar uma gorjeta decente).
Não desista de ler, Joãozinho. É agora que a coisa fica interessante.
No século 19, trens a vapor chegavam, bufando, à estação da cidade de Stresa, trazendo nomes como Verdi, Stendhal, Tennyson, Wagner, Tchaikovski e a mais vitoriana das figuras reais: a própria rainha Vitória, em pessoa.
A festa foi aumentando, com a inclusão de participantes inesperados: Ibsen, Henry James, Kafka e D.H.Lawrence.
A região dos lagos possui um revigorante clima de devassidão educada -é como passar a mão debaixo da saia de sua acompanhante muito correta, num jantar elegante.
Na década de 1870, quando o vizinho lago Como já abrigava algumas das festas mais loucas da Europa, Henry James assistia, alarmado, à brincadeira ficar fora de controle.
James ponderou que Como havia se transformado no lugar onde "jovens cavalheiros inflamados convidam as mulheres de outros cavalheiros a fugir com eles e ignorar as restrições impostas pela opinião pública". (Uau!)
Agora estamos chegando ao "xis" da questão.
O que trouxe tio Dave para a romântica terra dos lagos foi o exemplo de outro escritor que passou por aqui. Foi papai Hemingway que passou algum tempo em Stresa, enquanto se recuperava de uma ferida contraída na Primeira Guerra Mundial, num lugar extremamente embaraçoso.
A acreditar nas histórias que se contam por aí, Hemingway teria descoberto todos os grandes bares do mundo ocidental. Mas é verdade que aqui em Stresa ele bebia no Grand Hotel.
Entre alguns drinques e outros, Hemingway escreveu o clássico semi-autobiográfico "Adeus às Armas".
Hemingway faz o herói do livro, Frederic Henry, parar no minúsculo bar do Grand Hotel et des Iles Borromées, um lugar que é um grande bombom vitoriano.
O bar é uma espécie de miniatura, com apenas quatro bancos bem altos. No livro, Hemingway fala da aventura líquida. Ele tomou um martíni seco. "Era limpo e gelado", disse ele.
O martíni seco era tão seco e gelado que ele tomou mais dois ou três.
Estou fraco
No livro, Frederic Henry diz, referindo-se à heroína: "Senti-me fraco de tanto amá-la".
Ansioso por seguir o exemplo do grande Hemingway, tio Dave também visitou o famoso bar do Grand Hotel.
No melhor estilo Hemingway, Dave sentou-se num daqueles mesmos quatro banquinhos altos.
Depois ele e o barman conversaram sobre Hemingway e os famosos martínis muito secos, "limpos e gelados". O barman fez outro martíni limpo e gelado, só para ajudar tio Dave a recarregar suas baterias.
A tarde no Grand Hotel foi avançando até virar noite. Tio Dave realmente se sentiu intelectualmente revigorado, por isso tomou mais um martíni limpo e gelado. E, depois, mais um.
E na manhã seguinte, de fato, tio Dave estava se sentindo fraco, exatamente como no livro.
Com uma diferença: não era de amor.

Tradução Clara Allain




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