São Paulo, sexta-feira, 19 de junho de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

O Frade Espanhol


O político de hoje substitui com vantagem o frade do qual se podia esperar as piores coisas


A CORRUPÇÃO é uma velha companheira do poder. O prato com lentilhas com o qual o adolescente Jacó subornou seu irmão Esaú tornou-se mais substancial ao longo dos séculos, incluiu reinos, terras, mulheres, principalmente dinheiro, e sempre teve atuação nas disputas humanas, tanto nas individuais como nas coletivas.
Atravessamos agora, no Brasil, uma fase esquisita, não pela existência de corrupções variadas, algumas graves, outras gravíssimas, mas pelo modo com que elas se tornam conhecidas e estarrecem a opinião pública, contra a qual, recentemente, um deputado declarou estar se lixando. Tradicionalmente, competia à imprensa as denúncias ou suspeitas, e, num universo de mil acusações e suposições, sempre restavam duas ou três que se formalizavam e se transformavam em casos, ou até mesmo em ações na justiça.
Raríssimas davam em cadeia. Com a exceção dos bicheiros que periodicamente são presos, o grosso da boiada continua impune e muitas vezes premiada.
No momento, o que se verifica é que a imprensa simplesmente se limita a divulgar.
A responsabilidade das denúncias e das acusações, e até mesmo das suspeitas, passou à esfera do próprio grupo do poder, sobretudo através das "fontes", cujo sigilo é garantido por preceito constitucional. Sigilo que foi criado para proteger os jornalistas, mas que na realidade protege apenas as próprias fontes, que se ocultam no anonimato.
É uma entregação generalizada, que começou lá atrás, nos tempos de dona Zélia, cuja equipe trombava com outras. A sucessão de casos tornou-se rotina, e a imprensa, que antes saía a campo para fuçar a possibilidade de casos, reduziu-se a ficar na dela, esperando a inexorabilidade de novas acusações e suspeitas.
Um caso antigo e típico de nossa vida pública: irmão de Collor acusou um amigo do presidente de corrupção, enriquecimento ilícito, o diabo. Não houve carta anônima aos jornais, nenhum dos jornalistas investigativos entrou na jogada. Foi o próprio irmão presidencial que procurou os meios de comunicação e botou a boca no trombone.
Ou seja: é do próprio núcleo do poder que surgem as denúncias mais graves, as acusações mais detalhadas, as suspeitas mais insuspeitadas. Nem mesmo a trivial constatação de que estão todos no mesmo barco, com o informante de hoje podendo ser o informado de amanhã, como nem mesmo a necessidade de guardar as aparências, nada e ninguém impedem esse tipo de total puxação de tapete.
O que demonstra, em primeiro lugar, que o grupo do poder vive em permanente turbulência interna, não confia em si próprio e procura, por todas as maneiras, uma espécie de pacto que pode ser resumido naquela antiga anedota: "Que todos nos locupletemos ou que se instaure a moralidade!"
Fica difícil imaginar o que poderá acontecer com a lavagem de roupa suja em público.
Num caso ainda recente, o da liberalidade das passagens para os deputados, tivemos a voluntária confissão do próprio presidente da República que durante sua breve permanência no Congresso (apenas quatro anos) usou do benefício para reunir sindicalistas em Brasília. Outros parlamentares admitiram o erro e devolveram às burras da nação o equivalente das passagens.
O diabo é que, de uma forma ou de outra, com algum exagero ou sem ele, está comprometida a imagem do homem público, do profissional da política em geral.
Transformaram-se numa espécie de "frade espanhol" dos romances de capa-e-espada. Explico:
Durante todo o século 19 e até os inícios do seguinte, era comum um tipo de literatura popular que os críticos classificavam de "capa-e-espada". Duelos, adultérios, intrigas, anéis que continham fulminante veneno, ódios ancestrais, roubo de donzelas e assassinatos de herdeiros, corrupção de alto a baixo no núcleo do poder.
Havia um personagem que não podia faltar num pandemônio desses: um frade espanhol. A trama geral até podia estar num momento tranquilo, as coisas dentro do possível, mas bastava aparecer o tal frade e tudo se complicava, todo mundo brigava com todo mundo. O político de hoje substitui com vantagem o frade espanhol do qual se podia esperar as piores coisas.


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