|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Bólides e parangolés tiram o Brasil da periferia da arte
ADRIANO PEDROSA
especial para a Folha
"Oiticica pode ter sido o maior
artista do século", me diz com seu
jeito um tanto excêntrico o prestigiado artista conceitual norte-americano Dan Graham ao saber
que sou brasileiro.
É arriscado e um tanto fútil tentar distinguir se Graham tem ou
não razão, mas Hélio Oiticica certamente está entre as duas maiores
expressões que a arte brasileira já
produziu (a outra, sem dúvida, é
Lygia Clark).
Nos últimos anos (sobretudo
após a retrospectiva do artista que
circulou pela Europa e EUA de
1992 a 1994), a obra de Oiticica vem
despertando grande interesse nos
mais exclusivos circuitos de arte.
A recepção da obra do artista
brasileiro pode ser inserida num
projeto maior e mais difuso de retomada e reavaliação da arte mais
experimental e de cunho conceitual produzida nos anos 60 (preocupação expressa pela própria Catherine David).
A revisitação dos anos 60 resgata
questionamentos e reflexões acerca do estatuto da arte e suas condições de produção nos planos cultural, institucional e político. As
questões são antigas, mas permanecem cruciais para a compreensão da arte. Com Oiticica e Clark,
críticos europeus e norte-americanos se vêem forçados a reconhecer
que há outras fortes conceitualizações e desafios estéticos elaborados fora da Europa e EUA.
O que distingue as contribuições
de Oiticica é o fato de ele estabelecer novos paradigmas para pensar
e fazer arte, que vão além de derivações periféricas de experimentos, estilos, escolas e movimentos
europeus e norte-americanos.
A história de Oiticica começa
com seus metaesquemas, pequenos exercícios e estudos geométricos feitos em 1957-58 em guache
sobre cartão. Ainda que sejam os
mais bem-comportados e colecionáveis trabalhos do artista, os metaesquemas ensaiam o que mais
tarde será de fato a grande contribuição do artista: a ruptura com a
pura ordem construtiva do abstracionismo geométrico europeu.
No começo dos anos 60, surge o
elemento verdadeiramente revolucionário na obra do artista: a interação do espectador (que agora
se vê como ativo participante) com
os trabalhos. Assim, os "Núcleos"
(1960-63) são planos de cor instalados em diferentes composições
no espaço tridimensional da galeria, e não (como a tradicional pintura) no plano bidimensional de
suas paredes. As cores e composições subvertem a racionalidade
construtiva, operando num registro fenomenológico.
O elemento subversivo é o nosso
próprio corpo, pois fruímos e vivenciamos a obra ao circularmos
pela galeria.
Aqui, nada é estático, e se há performance, o agente não é o artista,
mas o próprio espectador.
A partir dos anos 60, os trabalhos
de Oiticica vão se aprofundar nas
questões de participação do espectador e de outras inteligências cromáticas e geométricas. Se o corpo é
presença fundamental, conhecer o
trabalho pressupõe vivência, e não
mera compreensão intelectual.
Como todo artista revolucionário, Oiticica reinventa seus meios
de expressão para articular forma,
conteúdo e sintaxe na fundação de
sua prática artística. Sua obra desafia estabelecidas categorias estéticas: bólides, penetráveis e parangolés, inventados e reinventados
nos anos 60 e 70, não são nem esculturas, nem pinturas, e têm apenas tênue ligação com a arte conceitual, a performance ou a instalação.
As bólides são caixas e vidros
contendo diferentes materiais como pigmentos, terras, espelhos,
pedaços de tecido e fotografias.
Por vezes há uma vaga lembrança
de composições construtivas, mas
somos chamados a explorar as diferentes possibilidades desses precários e poderosos objetos com
outros sentidos: ao abrir gavetas,
manusear materiais, sentir cheiros
e contemplar cores sedutoras.
Os penetráveis operam de forma
semelhante às bólides, mas numa
escala arquitetônica. É como se
nos encontrássemos dentro daqueles objetos que antes tateávamos. Agora o misterioso e sedutor
labirinto nos acolhe completamente. Nos penetráveis (cujo próprio nome sugere conhecimento
carnal), deparamo-nos com terras, pedras, tapetes, tecidos, rampas, plataformas, cantos e planos
de cor construídos mediante uma
outra geometria. Ao circularmos
por seus ambientes, conhecemos
novos campos estéticos.
Os parangolés são capas que devem ser vestidas pelo espectador
participante. No entanto, a vivência e fruição estética não se limita
àquele que pula ou dança dentro
do parangolé, mas estende-se também aos que o contemplam. Novamente encontramos referências a
composições geométricas, mas
agora associadas ao elemento carnavalesco e coladas ao corpo do
espectador.
Os trabalhos de Hélio Oiticica, de
forma semelhante aos de sua colega Lygia Clark, desdenhavam da
instituição, do sistema e do mercado de arte. Eles não eram tanto
obras de arte, mas experiências.
Jamais se concluíam definitivamente, e por isso, até hoje, desafiam nossa confortável e estabelecida compreensão da arte.
Adriano Pedrosa é artista plástico e crítico de
artes, tendo colaborado com revistas como
"Artforum", "Art Nexus", "Art & Text", "Casa Vogue", "Poliester" e "Trans".
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|