São Paulo, quinta, 19 de junho de 1997.



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ARTIGO
Bólides e parangolés tiram o Brasil da periferia da arte

ADRIANO PEDROSA
especial para a Folha

"Oiticica pode ter sido o maior artista do século", me diz com seu jeito um tanto excêntrico o prestigiado artista conceitual norte-americano Dan Graham ao saber que sou brasileiro.
É arriscado e um tanto fútil tentar distinguir se Graham tem ou não razão, mas Hélio Oiticica certamente está entre as duas maiores expressões que a arte brasileira já produziu (a outra, sem dúvida, é Lygia Clark).
Nos últimos anos (sobretudo após a retrospectiva do artista que circulou pela Europa e EUA de 1992 a 1994), a obra de Oiticica vem despertando grande interesse nos mais exclusivos circuitos de arte.
A recepção da obra do artista brasileiro pode ser inserida num projeto maior e mais difuso de retomada e reavaliação da arte mais experimental e de cunho conceitual produzida nos anos 60 (preocupação expressa pela própria Catherine David).
A revisitação dos anos 60 resgata questionamentos e reflexões acerca do estatuto da arte e suas condições de produção nos planos cultural, institucional e político. As questões são antigas, mas permanecem cruciais para a compreensão da arte. Com Oiticica e Clark, críticos europeus e norte-americanos se vêem forçados a reconhecer que há outras fortes conceitualizações e desafios estéticos elaborados fora da Europa e EUA.
O que distingue as contribuições de Oiticica é o fato de ele estabelecer novos paradigmas para pensar e fazer arte, que vão além de derivações periféricas de experimentos, estilos, escolas e movimentos europeus e norte-americanos.
A história de Oiticica começa com seus metaesquemas, pequenos exercícios e estudos geométricos feitos em 1957-58 em guache sobre cartão. Ainda que sejam os mais bem-comportados e colecionáveis trabalhos do artista, os metaesquemas ensaiam o que mais tarde será de fato a grande contribuição do artista: a ruptura com a pura ordem construtiva do abstracionismo geométrico europeu.
No começo dos anos 60, surge o elemento verdadeiramente revolucionário na obra do artista: a interação do espectador (que agora se vê como ativo participante) com os trabalhos. Assim, os "Núcleos" (1960-63) são planos de cor instalados em diferentes composições no espaço tridimensional da galeria, e não (como a tradicional pintura) no plano bidimensional de suas paredes. As cores e composições subvertem a racionalidade construtiva, operando num registro fenomenológico.
O elemento subversivo é o nosso próprio corpo, pois fruímos e vivenciamos a obra ao circularmos pela galeria.
Aqui, nada é estático, e se há performance, o agente não é o artista, mas o próprio espectador.
A partir dos anos 60, os trabalhos de Oiticica vão se aprofundar nas questões de participação do espectador e de outras inteligências cromáticas e geométricas. Se o corpo é presença fundamental, conhecer o trabalho pressupõe vivência, e não mera compreensão intelectual.
Como todo artista revolucionário, Oiticica reinventa seus meios de expressão para articular forma, conteúdo e sintaxe na fundação de sua prática artística. Sua obra desafia estabelecidas categorias estéticas: bólides, penetráveis e parangolés, inventados e reinventados nos anos 60 e 70, não são nem esculturas, nem pinturas, e têm apenas tênue ligação com a arte conceitual, a performance ou a instalação.
As bólides são caixas e vidros contendo diferentes materiais como pigmentos, terras, espelhos, pedaços de tecido e fotografias. Por vezes há uma vaga lembrança de composições construtivas, mas somos chamados a explorar as diferentes possibilidades desses precários e poderosos objetos com outros sentidos: ao abrir gavetas, manusear materiais, sentir cheiros e contemplar cores sedutoras.
Os penetráveis operam de forma semelhante às bólides, mas numa escala arquitetônica. É como se nos encontrássemos dentro daqueles objetos que antes tateávamos. Agora o misterioso e sedutor labirinto nos acolhe completamente. Nos penetráveis (cujo próprio nome sugere conhecimento carnal), deparamo-nos com terras, pedras, tapetes, tecidos, rampas, plataformas, cantos e planos de cor construídos mediante uma outra geometria. Ao circularmos por seus ambientes, conhecemos novos campos estéticos.
Os parangolés são capas que devem ser vestidas pelo espectador participante. No entanto, a vivência e fruição estética não se limita àquele que pula ou dança dentro do parangolé, mas estende-se também aos que o contemplam. Novamente encontramos referências a composições geométricas, mas agora associadas ao elemento carnavalesco e coladas ao corpo do espectador.
Os trabalhos de Hélio Oiticica, de forma semelhante aos de sua colega Lygia Clark, desdenhavam da instituição, do sistema e do mercado de arte. Eles não eram tanto obras de arte, mas experiências. Jamais se concluíam definitivamente, e por isso, até hoje, desafiam nossa confortável e estabelecida compreensão da arte.


Adriano Pedrosa é artista plástico e crítico de artes, tendo colaborado com revistas como "Artforum", "Art Nexus", "Art & Text", "Casa Vogue", "Poliester" e "Trans".




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