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LIVROS - LANÇAMENTOS
Ellroy investiga obsessão com a mãe
BIA ABRAMO
especial para a Folha
Em 1958, uma
mulher foi encontrada estrangulada perto do
playground de
uma escola em
El Monte, cidadezinha de imigrantes hispânicos no sul da Califórnia. Essa mulher era Geneva
(Jean) Hilliker Ellroy, a mãe do escritor James Ellroy. Ele tinha 10
anos. O assassino nunca foi encontrado.
Quarenta anos mais tarde, o órfão James, agora considerado o
grande revitalizador do policial
contemporâneo, voltaria ao assunto que norteou sua vida em "Meus
Lugares Escuros" (recém-lançado
no Brasil pela editora Record) para
reinvestigar o crime e descobrir
quem, de fato, era sua mãe.
Decidido a achar o assassino de
sua mãe, Ellroy associa-se a Bill
Stoner, um ex-investigador da polícia de Los Angeles, especializado
em homicídios de resolução complicada. O escritor e o investigador
passariam mais de um ano revolvendo arquivos, entrevistando testemunhas, seguindo pistas falsas.
Em vão. O assassino de Jean Ellroy
continua desconhecido.
"A morte de minha mãe corrompeu e fortaleceu minha imaginação. Liberou-me e constrangeu ao
mesmo tempo. Determinou meu
currículo mental. Eu me formei em
crime e me especializei em mulheres vivisseccionadas. Cresci e escrevi romances sobre o mundo
masculino que sanciona suas mortes", escreveu Ellroy em um artigo
para a revista "GQ" que precedeu a
publicação do livro.
O assassinato da própria mãe já
parece credencial suficiente para
legitimar uma carreira de escritor
de policial, sobretudo do gênero
"duro" consagrado pelo policial
norte-americano. Mas ainda tem
mais: criado pelo pai, de quem a
mãe havia se divorciado quatro
anos antes de ser morta, James teve
uma vida errática. Foi expulso do
segundo grau por má conduta
-ele desenhava suásticas no banheiro de uma escola com clientela
majoritariamente judaica.
Alistou-se no Exército: "Tudo no
Exército fazia com que eu cagasse
de medo -fingi um colapso e peguei uma dispensa por incapacidade ("Noturnos de Hollywood')". O
pai morreu quando tinha 17 anos.
Os dez anos seguintes, Ellroy
passou-os numa confusão de excesso de álcool e de anfetaminas,
pequenos furtos e delitos de inspiração sexual (ele arrombava casas
para roubar calcinhas). Foi preso
várias vezes.
Um dia, Ellroy parou com o álcool e as drogas, com os crimes e
pecados, arrumou emprego carregando tacos de golfe para milionários. Começou a escrever. Em seis
anos, publicou seis livros. Já nos
primeiros, como "Brown's Requiem" (81) e "Blood in the Moon"
(84), mostrava-se um aplicado,
mas ainda pouco imaginativo aluno da escola de Dashiell Hammett
e Mickey Spillane: frases curtas e
diretas, urgência e violência.
No sétimo livro, Ellroy não descansou como o Deus todo-poderoso em que diz acreditar com uma fé
infantil. Em "Black Dhalia", seu
romance até então mais bem acabado em termos de estilo, trama e
atmosfera, inventou seu grande
personagem: ele mesmo, o escritor
de passado traumático e marcado
pelo desvio à norma. O romance
trata do assassinato de uma jovem
aspirante à atriz, em circunstâncias semelhantes às da mãe de Ellroy, a quem o livro é dedicado.
O fato de usar sua tragédia pessoal de forma deliberada rendeu a
Ellroy muita publicidade e a fama
de cínico, mas, mais importante,
investiu sua visão do mundo da
violência com a autoridade de
quem esteve lá. "Black Dhalia"
abriu caminho para mais três romances do "quarteto de Los Angeles": "The Big Nowhere" (1988),
"LA Confidential" (1990, que ganhou uma versão para o cinema
em 1997, "Los Angeles - Cidade
Proibida" e foi lançado aqui pela
Record com o mesmo título do filme) e "White Jazz" (1992).
Nos quatro, gângsteres reais misturam-se a personagens ficcionais,
crimes famosos são investigados
por policiais inventados, a corrupção envenena a polícia, polícia ataca inocentes para ocultar suas próprias faltas e torna-se tão culpada
quanto os criminosos que deveria
prender. Os anos 50 da pax americana (e da infância de Ellroy) revelam-se, enfim, um pesadelo.
Depois de Los Angeles nos anos
50, ele iniciou uma nova trilogia
com "Tablóide Americano" (lançado no ano passado pela Record),
em que reconta o assassinato de
John F. Kennedy à sua moda, ou
seja, como o resultado de um megacomplô da direita com o crime
organizado. Atualmente, Ellroy está escrevendo o segundo da série,
que trata dos anos da Guerra do
Vietnã (1963-1973).
"Meus Lugares Escuros" é ao
mesmo tempo um relato autobiográfico e o mais elaborado romance de Ellroy. Se em suas histórias
policiais, a narrativa ficcional confunde-se com a confissão, o realismo com o exorcismo pessoal, desta vez ele inverte o caminho e faz a
matéria de sua ficção transformar-se em uma hiper-realidade romanceada.
No decurso da investigação com
Bill Stoner, Ellroy consegue reescrever as várias histórias que imbricam-se nessa investigação; a da
vida e morte de Jean Ellroy, a dele e
a do detetive Bill Stoner. Desta vez,
o escritor utiliza a frieza da linguagem relatorial policial para examinar exaustiva e obsessivamente todos os desdobramentos relacionados ao assassinato da mãe.
O efeito é paradoxal. "Meus Lugares Escuros" resulta profundamente emotivo. Como se Ellroy estivesse usando as melhores ferramentas do noir para produzir exatamente seu oposto, uma narrativa
sensível, uma história delicada de
sentimentos tumultuados.
Avaliação:
Livro: Meus Lugares Escuros
Autor: James Ellroy
Lançamento: Record
Quanto: R$ 30 (442 págs.)
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