São Paulo, Sábado, 19 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS - LANÇAMENTOS
Ellroy investiga obsessão com a mãe

BIA ABRAMO
especial para a Folha

Em 1958, uma mulher foi encontrada estrangulada perto do playground de uma escola em El Monte, cidadezinha de imigrantes hispânicos no sul da Califórnia. Essa mulher era Geneva (Jean) Hilliker Ellroy, a mãe do escritor James Ellroy. Ele tinha 10 anos. O assassino nunca foi encontrado.
Quarenta anos mais tarde, o órfão James, agora considerado o grande revitalizador do policial contemporâneo, voltaria ao assunto que norteou sua vida em "Meus Lugares Escuros" (recém-lançado no Brasil pela editora Record) para reinvestigar o crime e descobrir quem, de fato, era sua mãe.
Decidido a achar o assassino de sua mãe, Ellroy associa-se a Bill Stoner, um ex-investigador da polícia de Los Angeles, especializado em homicídios de resolução complicada. O escritor e o investigador passariam mais de um ano revolvendo arquivos, entrevistando testemunhas, seguindo pistas falsas. Em vão. O assassino de Jean Ellroy continua desconhecido.
"A morte de minha mãe corrompeu e fortaleceu minha imaginação. Liberou-me e constrangeu ao mesmo tempo. Determinou meu currículo mental. Eu me formei em crime e me especializei em mulheres vivisseccionadas. Cresci e escrevi romances sobre o mundo masculino que sanciona suas mortes", escreveu Ellroy em um artigo para a revista "GQ" que precedeu a publicação do livro.
O assassinato da própria mãe já parece credencial suficiente para legitimar uma carreira de escritor de policial, sobretudo do gênero "duro" consagrado pelo policial norte-americano. Mas ainda tem mais: criado pelo pai, de quem a mãe havia se divorciado quatro anos antes de ser morta, James teve uma vida errática. Foi expulso do segundo grau por má conduta -ele desenhava suásticas no banheiro de uma escola com clientela majoritariamente judaica.
Alistou-se no Exército: "Tudo no Exército fazia com que eu cagasse de medo -fingi um colapso e peguei uma dispensa por incapacidade ("Noturnos de Hollywood')". O pai morreu quando tinha 17 anos.
Os dez anos seguintes, Ellroy passou-os numa confusão de excesso de álcool e de anfetaminas, pequenos furtos e delitos de inspiração sexual (ele arrombava casas para roubar calcinhas). Foi preso várias vezes.
Um dia, Ellroy parou com o álcool e as drogas, com os crimes e pecados, arrumou emprego carregando tacos de golfe para milionários. Começou a escrever. Em seis anos, publicou seis livros. Já nos primeiros, como "Brown's Requiem" (81) e "Blood in the Moon" (84), mostrava-se um aplicado, mas ainda pouco imaginativo aluno da escola de Dashiell Hammett e Mickey Spillane: frases curtas e diretas, urgência e violência.
No sétimo livro, Ellroy não descansou como o Deus todo-poderoso em que diz acreditar com uma fé infantil. Em "Black Dhalia", seu romance até então mais bem acabado em termos de estilo, trama e atmosfera, inventou seu grande personagem: ele mesmo, o escritor de passado traumático e marcado pelo desvio à norma. O romance trata do assassinato de uma jovem aspirante à atriz, em circunstâncias semelhantes às da mãe de Ellroy, a quem o livro é dedicado.
O fato de usar sua tragédia pessoal de forma deliberada rendeu a Ellroy muita publicidade e a fama de cínico, mas, mais importante, investiu sua visão do mundo da violência com a autoridade de quem esteve lá. "Black Dhalia" abriu caminho para mais três romances do "quarteto de Los Angeles": "The Big Nowhere" (1988), "LA Confidential" (1990, que ganhou uma versão para o cinema em 1997, "Los Angeles - Cidade Proibida" e foi lançado aqui pela Record com o mesmo título do filme) e "White Jazz" (1992).
Nos quatro, gângsteres reais misturam-se a personagens ficcionais, crimes famosos são investigados por policiais inventados, a corrupção envenena a polícia, polícia ataca inocentes para ocultar suas próprias faltas e torna-se tão culpada quanto os criminosos que deveria prender. Os anos 50 da pax americana (e da infância de Ellroy) revelam-se, enfim, um pesadelo.
Depois de Los Angeles nos anos 50, ele iniciou uma nova trilogia com "Tablóide Americano" (lançado no ano passado pela Record), em que reconta o assassinato de John F. Kennedy à sua moda, ou seja, como o resultado de um megacomplô da direita com o crime organizado. Atualmente, Ellroy está escrevendo o segundo da série, que trata dos anos da Guerra do Vietnã (1963-1973).
"Meus Lugares Escuros" é ao mesmo tempo um relato autobiográfico e o mais elaborado romance de Ellroy. Se em suas histórias policiais, a narrativa ficcional confunde-se com a confissão, o realismo com o exorcismo pessoal, desta vez ele inverte o caminho e faz a matéria de sua ficção transformar-se em uma hiper-realidade romanceada.
No decurso da investigação com Bill Stoner, Ellroy consegue reescrever as várias histórias que imbricam-se nessa investigação; a da vida e morte de Jean Ellroy, a dele e a do detetive Bill Stoner. Desta vez, o escritor utiliza a frieza da linguagem relatorial policial para examinar exaustiva e obsessivamente todos os desdobramentos relacionados ao assassinato da mãe.
O efeito é paradoxal. "Meus Lugares Escuros" resulta profundamente emotivo. Como se Ellroy estivesse usando as melhores ferramentas do noir para produzir exatamente seu oposto, uma narrativa sensível, uma história delicada de sentimentos tumultuados.


Avaliação:    


Livro: Meus Lugares Escuros
Autor: James Ellroy
Lançamento: Record
Quanto: R$ 30 (442 págs.)


Texto Anterior: Televisão: Especial do canal E! relata a trajetória de "Central do Brasil"
Próximo Texto: Resenha da Semana - Bernardo Carvalho: Rir de si mesmo
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.