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DEPOIMENTO
Às vezes, as coisas inimagináveis acontecem
FRED ZERO QUATRO
especial para a Folha
Quando, no início de 1984, eu e
meu irmão (Fábio, baixista) resolvemos abandonar o hardcore dogmático e fundar uma nova banda
(nós já havíamos tocado juntos no
Trapaça e no Serviço Sujo) com o
desafio de abrasileirar radicalmente o punk e a new wave, havia pelo
menos duas coisas que jamais conseguiríamos imaginar como possíveis -nem em nossos mais remotos delírios.
Uma, que um dia tocaríamos em
conjunto com o famoso Quinteto
Violado uma música do monumental Luiz Gonzaga, num palco
montado à beira do lendário rio
São Francisco.
Outra, que esse mesmo notório
quinteto algum dia lançaria um
CD contendo uma releitura de
uma composição nossa.
Afinal de contas, 15 anos atrás,
uma banda fazendo uma tradução
livre, adulterada e descaradamente
artesanal (low-tech) do punk inglês e da new wave nova-iorquina
em plena periferia de Recife era
vista no mínimo como uma aberração monstruosa e demente
-com toda justiça, é óbvio.
Então, os roqueiros da cidade,
metaleiros ortodoxos, nos acusavam de caretas "MPBóides". E os
outros, regionalistas, armoriais e
quejandos, nos chamavam de metaleiros.
Já o Quinteto Violado, desde seu
surgimento, em meados dos anos
70, era a imagem oposta. MPB calcada no que havia de mais sagrado
na herança rural nordestina, tudo
filtrado por uma apropriada formação acadêmica que imprimia
nos arranjos uma marca ao mesmo
tempo sofisticada e eficiente.
Naturalmente, o conjunto não
tardou a ser adotado pelos órgãos
públicos e privados como um dos
inquestionáveis patrimônios vivos
da música pernambucana -com
todo o merecimento, diga-se de
passagem.
Mas as coisas inimagináveis às
vezes acontecem. Foi o caso das
duas citadas no início. O primeiro
suposto absurdo se concretizou no
ano passado, durante o Xingó Eco
Festival.
E o segundo, agora, com o lançamento -para a provável indignação dos armorialistas- de "Farinha do Mesmo Saco".
Se doeu? Absolutamente, pelo
menos de nossa parte eu posso garantir que não doeu nada. Quanto
ao significado histórico... Bem, como diria um mestre zen, o rio São
Francisco com toda certeza nunca
será o mesmo.
Fred Zero Quatro, músico, cantor e compositor,
é líder da banda recifense Mundo Livre S/A.
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