São Paulo, Sábado, 19 de Junho de 1999
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DEPOIMENTO
Às vezes, as coisas inimagináveis acontecem

FRED ZERO QUATRO
especial para a Folha

Quando, no início de 1984, eu e meu irmão (Fábio, baixista) resolvemos abandonar o hardcore dogmático e fundar uma nova banda (nós já havíamos tocado juntos no Trapaça e no Serviço Sujo) com o desafio de abrasileirar radicalmente o punk e a new wave, havia pelo menos duas coisas que jamais conseguiríamos imaginar como possíveis -nem em nossos mais remotos delírios.
Uma, que um dia tocaríamos em conjunto com o famoso Quinteto Violado uma música do monumental Luiz Gonzaga, num palco montado à beira do lendário rio São Francisco.
Outra, que esse mesmo notório quinteto algum dia lançaria um CD contendo uma releitura de uma composição nossa.
Afinal de contas, 15 anos atrás, uma banda fazendo uma tradução livre, adulterada e descaradamente artesanal (low-tech) do punk inglês e da new wave nova-iorquina em plena periferia de Recife era vista no mínimo como uma aberração monstruosa e demente -com toda justiça, é óbvio.
Então, os roqueiros da cidade, metaleiros ortodoxos, nos acusavam de caretas "MPBóides". E os outros, regionalistas, armoriais e quejandos, nos chamavam de metaleiros.
Já o Quinteto Violado, desde seu surgimento, em meados dos anos 70, era a imagem oposta. MPB calcada no que havia de mais sagrado na herança rural nordestina, tudo filtrado por uma apropriada formação acadêmica que imprimia nos arranjos uma marca ao mesmo tempo sofisticada e eficiente.
Naturalmente, o conjunto não tardou a ser adotado pelos órgãos públicos e privados como um dos inquestionáveis patrimônios vivos da música pernambucana -com todo o merecimento, diga-se de passagem.
Mas as coisas inimagináveis às vezes acontecem. Foi o caso das duas citadas no início. O primeiro suposto absurdo se concretizou no ano passado, durante o Xingó Eco Festival.
E o segundo, agora, com o lançamento -para a provável indignação dos armorialistas- de "Farinha do Mesmo Saco".
Se doeu? Absolutamente, pelo menos de nossa parte eu posso garantir que não doeu nada. Quanto ao significado histórico... Bem, como diria um mestre zen, o rio São Francisco com toda certeza nunca será o mesmo.


Fred Zero Quatro, músico, cantor e compositor, é líder da banda recifense Mundo Livre S/A.


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