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CARLOS HEITOR CONY
O lugar-comum na literatura e no cinema
Críticos e leitores, principalmente os primeiros, costumam ser rigorosos em cobrar de quem escreve o uso e abuso dos lugares-comuns. Todos se sentem
inteligentes quando identificam aquilo que o lugar-comum mais
comum chama de ""clichê". Quando alguém razoavelmente informado encontra num texto uma ladeira íngreme, um frio siberiano, um calor senegalesco, um prazer indescritível, uma lividez cadavérica ou uma beleza sem jaça,
sem falar na insidiosa moléstia
que hoje chamamos de câncer,
tem todo o direito de fechar o livro, a revista ou o jornal e injuriar o autor, chamando-o de besta ou coisa pior.
No entanto, ninguém reclama
dos lugares-comuns do cinema,
que dia-a-dia são mais frequentes
e abundantes. Já vi filmes, sobretudo os mais recentes, exibidos na
TV, que nada mais eram que um
desfile, do começo ao fim, de todos os lugares-comuns de uma arte de narrar que, apesar de jovem,
já tem mais vícios e equívocos do
que a literatura.
Afinal, o cinema veio do final
do século 19, creio que em 1895,
quando os irmãos Lumière projetaram na parede branca de um
prédio do Boulevard des Capucines a chegada do trem de Vincennes.
Já a literatura vem de mais longe, de Homero, ou mais tarde ainda, vem das cavernas, quando o
relato oral fazia as vezes da literatura e do cinema. Sem falar nos
recados que os trogloditas deixavam nas paredes das próprias cavernas, dando um recado, uma
ameaça ou, mesmo, uma declaração de amor.
Citei alguns dos lugares-comuns mais frequentes e irritantes
do texto literário, quando as ladeiras são invariavelmente íngremes, o prazer é indescritível, a
gargalhada sonora.
No cinema, são as malas que
são carregadas vazias, um sujeito
franzino consegue segurar três,
quatro malas com facilidade. Na
vida real, sabemos como a mala é
realmente mala. E como são feitas? A mulher brigou com o marido que chegou tarde e bêbado, decide voltar para a casa da mãe.
Apanha a mala embaixo da cama, abre o armário e as gavetas,
em menos de 30 segundos coloca
nela todo o enxoval, dos vestidos
de noite aos lencinhos e sapatos.
Apesar de pequena e abarrotada, a mala fecha maravilhosamente. Na vida real, transportar
malas é difícil e fechá-las é dificílimo -quando se consegue fechar.
Mais fácil do que fazer ou transportar malas é compor música ou
pagar o táxi com o trocado que se
traz no bolso da calça. Nesse caso,
é impressionante como o cara
tem sempre a quantia exata da
corrida. Mete a mão no bolso e de
lá sai o preço marcado no taxímetro, incluindo centavos. O boy
vem trazer o telegrama ou a cesta
de flores, no primeiro bolso em
que o cara mete a mão tem a
moeda exata para a gorjeta.
E, na hora de compor um desses
sucessos imortais, que até hoje
cantamos e louvamos, é comovente a facilidade com que, de
uma goteira no sótão, que marca
um ritmo primário e indeciso, sai
um sucesso como ""Night and
Day". Num filme sobre a vida de
Strauss, do rodar de uma carruagem que corre os bosques de Viena, o compositor fez do princípio
ao fim uma enorme valsa sobre os
citados bosques. Estava sem inspiração, pensando em outra coisa, o balanço do carro fez com que
o carro lhe desse, inteira, uma
valsa imortal.
Zequinha de Abreu viu um tico-tico comendo fubá no peitoril de
janela, atravessava uma fase negra, nada saía de seus dedos ao
piano, e, de repente, em pouco
mais de um minuto, compôs o famoso chorinho.
George Gershwin ia andando
pela rua quando viu um moleque
sapateando sem música. Neste
momento, surge uma mudança,
com o piano amarrado do lado de
fora do caminhão. Ele nem pede
licença aos transportadores. Em
pé mesmo, e aproveitando o ritmo do sapateado do menino, faz
seu primeiro sucesso, ""Swanee".
Passando por aí ao acaso, Al Jolson ouve a música uma única vez
e sem nenhum ensaio a eterniza,
fabricando uma letra que, no cinema, ninguém sabe quem fez.
Mais extraordinário é que, num
filme de suspense, todas as gavetas têm sempre uma arma à disposição para a defesa ou o ataque. E toda cortina branca que o
vento balança é sinal de que um
fantasma ou um criminoso vai
aparecer na janela e tentar fazer
estrago.
Mesmo uma obra-prima, como
""Cidadão Kane", repete diversos
lugares-comuns e alguns de seus
achados mais geniais foram chupados de outros filmes. Basta citar a cena de Orson Welles caminhando entre os espelhos, feita alguns anos antes por Chaplin, em
""O Circo". De lá para cá, virou lugar-comum, inclusive quando
não há espelho e os irmãos Marx,
Bob Hope, Dany Kaye, Jerry Lewis e outros comediantes repetem
o mesmo truque.
Mas o lugar-comum mais inarredável do cinema talvez seja
aquela idazinha ao bar para tomar um drinque. O sujeito entra
na sala para matar, roubar, amar
ou fazer qualquer coisa, mas vai
direto ao bar ou à mesa onde há
copos e garrafas. Ouve-se o barulho da bebida enchendo o copo.
Por essas e por outras, em pouco
mais de cem anos o cinema já está
tão cansado quanto a literatura.
De minha parte, já estou cansado
também desta ladeira íngreme
que todos os dias tenho de subir
para ganhar o pão de cada dia.
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