São Paulo, sexta-feira, 19 de julho de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O lugar-comum na literatura e no cinema

Críticos e leitores, principalmente os primeiros, costumam ser rigorosos em cobrar de quem escreve o uso e abuso dos lugares-comuns. Todos se sentem inteligentes quando identificam aquilo que o lugar-comum mais comum chama de ""clichê". Quando alguém razoavelmente informado encontra num texto uma ladeira íngreme, um frio siberiano, um calor senegalesco, um prazer indescritível, uma lividez cadavérica ou uma beleza sem jaça, sem falar na insidiosa moléstia que hoje chamamos de câncer, tem todo o direito de fechar o livro, a revista ou o jornal e injuriar o autor, chamando-o de besta ou coisa pior.
No entanto, ninguém reclama dos lugares-comuns do cinema, que dia-a-dia são mais frequentes e abundantes. Já vi filmes, sobretudo os mais recentes, exibidos na TV, que nada mais eram que um desfile, do começo ao fim, de todos os lugares-comuns de uma arte de narrar que, apesar de jovem, já tem mais vícios e equívocos do que a literatura.
Afinal, o cinema veio do final do século 19, creio que em 1895, quando os irmãos Lumière projetaram na parede branca de um prédio do Boulevard des Capucines a chegada do trem de Vincennes.
Já a literatura vem de mais longe, de Homero, ou mais tarde ainda, vem das cavernas, quando o relato oral fazia as vezes da literatura e do cinema. Sem falar nos recados que os trogloditas deixavam nas paredes das próprias cavernas, dando um recado, uma ameaça ou, mesmo, uma declaração de amor.
Citei alguns dos lugares-comuns mais frequentes e irritantes do texto literário, quando as ladeiras são invariavelmente íngremes, o prazer é indescritível, a gargalhada sonora.
No cinema, são as malas que são carregadas vazias, um sujeito franzino consegue segurar três, quatro malas com facilidade. Na vida real, sabemos como a mala é realmente mala. E como são feitas? A mulher brigou com o marido que chegou tarde e bêbado, decide voltar para a casa da mãe. Apanha a mala embaixo da cama, abre o armário e as gavetas, em menos de 30 segundos coloca nela todo o enxoval, dos vestidos de noite aos lencinhos e sapatos.
Apesar de pequena e abarrotada, a mala fecha maravilhosamente. Na vida real, transportar malas é difícil e fechá-las é dificílimo -quando se consegue fechar.
Mais fácil do que fazer ou transportar malas é compor música ou pagar o táxi com o trocado que se traz no bolso da calça. Nesse caso, é impressionante como o cara tem sempre a quantia exata da corrida. Mete a mão no bolso e de lá sai o preço marcado no taxímetro, incluindo centavos. O boy vem trazer o telegrama ou a cesta de flores, no primeiro bolso em que o cara mete a mão tem a moeda exata para a gorjeta.
E, na hora de compor um desses sucessos imortais, que até hoje cantamos e louvamos, é comovente a facilidade com que, de uma goteira no sótão, que marca um ritmo primário e indeciso, sai um sucesso como ""Night and Day". Num filme sobre a vida de Strauss, do rodar de uma carruagem que corre os bosques de Viena, o compositor fez do princípio ao fim uma enorme valsa sobre os citados bosques. Estava sem inspiração, pensando em outra coisa, o balanço do carro fez com que o carro lhe desse, inteira, uma valsa imortal.
Zequinha de Abreu viu um tico-tico comendo fubá no peitoril de janela, atravessava uma fase negra, nada saía de seus dedos ao piano, e, de repente, em pouco mais de um minuto, compôs o famoso chorinho.
George Gershwin ia andando pela rua quando viu um moleque sapateando sem música. Neste momento, surge uma mudança, com o piano amarrado do lado de fora do caminhão. Ele nem pede licença aos transportadores. Em pé mesmo, e aproveitando o ritmo do sapateado do menino, faz seu primeiro sucesso, ""Swanee". Passando por aí ao acaso, Al Jolson ouve a música uma única vez e sem nenhum ensaio a eterniza, fabricando uma letra que, no cinema, ninguém sabe quem fez.
Mais extraordinário é que, num filme de suspense, todas as gavetas têm sempre uma arma à disposição para a defesa ou o ataque. E toda cortina branca que o vento balança é sinal de que um fantasma ou um criminoso vai aparecer na janela e tentar fazer estrago.
Mesmo uma obra-prima, como ""Cidadão Kane", repete diversos lugares-comuns e alguns de seus achados mais geniais foram chupados de outros filmes. Basta citar a cena de Orson Welles caminhando entre os espelhos, feita alguns anos antes por Chaplin, em ""O Circo". De lá para cá, virou lugar-comum, inclusive quando não há espelho e os irmãos Marx, Bob Hope, Dany Kaye, Jerry Lewis e outros comediantes repetem o mesmo truque.
Mas o lugar-comum mais inarredável do cinema talvez seja aquela idazinha ao bar para tomar um drinque. O sujeito entra na sala para matar, roubar, amar ou fazer qualquer coisa, mas vai direto ao bar ou à mesa onde há copos e garrafas. Ouve-se o barulho da bebida enchendo o copo.
Por essas e por outras, em pouco mais de cem anos o cinema já está tão cansado quanto a literatura. De minha parte, já estou cansado também desta ladeira íngreme que todos os dias tenho de subir para ganhar o pão de cada dia.



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