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WALTER SALLES
Um adeus a Compay Segundo e o impacto de "Suite Habana"
Foi como a crônica de um desaparecimento anunciado.
Havana, no final de semana passado. Fotos de Compay Segundo
se multiplicam pela cidade. Como
um último agradecimento. Depois de 95 anos bem vividos
-com a ajuda dos "puros", do
rum e do caldinho de pescoço de
galinha que ele recomendava como santo remédio contra a abstinência sexual-, a estrela maior
do Buena Vista Social Club andava doente. Cálculo renal, doença
besta que ele provavelmente ironizava em sua casa da calle Salud.
No sábado, seus filhos lhe ofereceram uma homenagem em um
hotel da cidade. Compay compareceu. Morreu dois dias depois.
Havana amanheceu calada na
última segunda-feira, embora
Compay tenha nascido em Siboney e sido enterrado em Santiago
de Cuba, onde viveu na juventude. Nas rádios, na TV, nas bocas
de cubanos de todas as idades, só
se falava de Francisco Repilado
Muñoz -ou Compay Segundo,
seu nome artístico.
Não há segunda chance na vida
americana, dizia Mark Twain.
Há, e Dennis Hopper está aí para
contradizer a tese. Na vida cubana, se o exemplo for Compay, há
muitas mais. Compay começou a
carreira nos anos 30, como membro do quarteto Hatuey. Depois
veio o grupo Los Compadres, de
onde surgiu, você já adivinhou, o
apelido Compay. Andou meio esquecido após a revolução, quando surgiu a Nova Trova cubana.
No ostracismo, Compay sobreviveu, enrolando os seus preciosos
"puros" numa fábrica de charutos. Renasceu, junto com Ibrahim
Ferrer, Omara Portuondo e um
monte de gente talentosa, no Buena Vista Social Club. E ainda lançou em 1999 um disco genial, "Calle Salud". Aos 92 anos.
Deu a volta ao mundo, fez sucesso em todas as latitudes, mas
era sobretudo adorado em Cuba.
Como se explica essa extraordinária popularidade? Pelo "son"
que fazia, em primeiro lugar. Por
sua capacidade de reinvenção e
de resistência, tão características
do povo cubano. E do seu humor e
humanismo transbordantes.
Não sei não, mas acho que
Compay daria boas risadas ao ver
o título que um jornal mexicano
utilizou para anunciar sua morte:
"Compay deja un pendiente en
Mexico". Ou seja, deixa um caso
mal resolvido. O caso é Felipa
Garcia, que Compay encontrou
em um restaurante chinês na Cidade do México, em... 1938. Namorou a moça. Nunca mais a viu,
mas ainda falava dela no ano
passado, em uma entrevista. "Tivemos uma ótima relação, mas
eu não quis me aprofundar, ia
partir pra Cuba e não queria deixá-la chorando. Detesto deixar as
pessoas chorando."
Nesta semana, muita gente chorou por Compay. Las flores de la
vida...
Por falar em humanismo: acaba de estrear um filme fora do comum em Cuba. "Suite Habana",
de Fernando Pérez. Três mil pessoas lotam todos os dias o Cine
Chaplin, na capital cubana, para
ver um documentário... sem diálogos. Sinal dos tempos, os filmes
de ficção em cartaz na cidade não
atraem nem metade desse público.
O mais extraordinário é que
"Suite Habana" é tudo, menos
um filme que faz concessões narrativas. Pérez segue, por 24 horas,
o cotidiano de uma dezena de habitantes de Havana. Um trabalhador de estrada de ferro que sonha em ser músico. Uma velha
que vende amendoins na rua e
não sonha mais. Um travesti. Um
arquiteto que opta por abandonar sua profissão para cuidar do
filho atingido pela síndrome de
Down. Um jovem bailarino. Vidas que se cruzam em pinceladas
de extrema delicadeza.
Imagens e sons se conjugam como raramente se vê na tela. O milagre de "Suite Habana" surge do
fato de que, mesmo sem que palavras sejam proferidas, temos a
sensação de que, no final dos 80
minutos de projeção, conhecemos
intimamente as pessoas que Fernando Pérez retratou de forma
tão respeitosa e pouco impositiva.
Através delas, desenha-se o contorno de todo um país.
É um cinema que não se dobra
a nenhuma escola. Às vezes é puro documentário, às vezes é mais
próximo da arquitetura proposta
por Flaherty em "O Homem de
Aran" ou "Nanook". Talvez o primo mais próximo de "Suite Habana" seja um documentário que
também respeita como poucos
aqueles que retrata: "Edifício
Master", de Eduardo Coutinho.
Uma obra em que, ao contrário
do filme de Pérez, a palavra é fundamental. É a prova de que artistas podem chegar a resultados semelhantes trilhando caminhos
diferentes.
Tomás Gutiérrez Alea, autor do
extraordinário "Memórias do
Subdesenvolvimento", dizia que
"o que pode interessar de Cuba,
dentro e fora de seus limites, é
aquilo que há de mais cubano nas
nossas manifestações, e a sinceridade como nos situamos frente
aos nossos problemas". Vale para
"Suite Habana". Compay Segundo estaria provavelmente de
acordo.
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