UOL


São Paulo, sábado, 19 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER SALLES

Um adeus a Compay Segundo e o impacto de "Suite Habana"

Foi como a crônica de um desaparecimento anunciado. Havana, no final de semana passado. Fotos de Compay Segundo se multiplicam pela cidade. Como um último agradecimento. Depois de 95 anos bem vividos -com a ajuda dos "puros", do rum e do caldinho de pescoço de galinha que ele recomendava como santo remédio contra a abstinência sexual-, a estrela maior do Buena Vista Social Club andava doente. Cálculo renal, doença besta que ele provavelmente ironizava em sua casa da calle Salud.
No sábado, seus filhos lhe ofereceram uma homenagem em um hotel da cidade. Compay compareceu. Morreu dois dias depois. Havana amanheceu calada na última segunda-feira, embora Compay tenha nascido em Siboney e sido enterrado em Santiago de Cuba, onde viveu na juventude. Nas rádios, na TV, nas bocas de cubanos de todas as idades, só se falava de Francisco Repilado Muñoz -ou Compay Segundo, seu nome artístico.
Não há segunda chance na vida americana, dizia Mark Twain. Há, e Dennis Hopper está aí para contradizer a tese. Na vida cubana, se o exemplo for Compay, há muitas mais. Compay começou a carreira nos anos 30, como membro do quarteto Hatuey. Depois veio o grupo Los Compadres, de onde surgiu, você já adivinhou, o apelido Compay. Andou meio esquecido após a revolução, quando surgiu a Nova Trova cubana.
No ostracismo, Compay sobreviveu, enrolando os seus preciosos "puros" numa fábrica de charutos. Renasceu, junto com Ibrahim Ferrer, Omara Portuondo e um monte de gente talentosa, no Buena Vista Social Club. E ainda lançou em 1999 um disco genial, "Calle Salud". Aos 92 anos.
Deu a volta ao mundo, fez sucesso em todas as latitudes, mas era sobretudo adorado em Cuba. Como se explica essa extraordinária popularidade? Pelo "son" que fazia, em primeiro lugar. Por sua capacidade de reinvenção e de resistência, tão características do povo cubano. E do seu humor e humanismo transbordantes.
Não sei não, mas acho que Compay daria boas risadas ao ver o título que um jornal mexicano utilizou para anunciar sua morte: "Compay deja un pendiente en Mexico". Ou seja, deixa um caso mal resolvido. O caso é Felipa Garcia, que Compay encontrou em um restaurante chinês na Cidade do México, em... 1938. Namorou a moça. Nunca mais a viu, mas ainda falava dela no ano passado, em uma entrevista. "Tivemos uma ótima relação, mas eu não quis me aprofundar, ia partir pra Cuba e não queria deixá-la chorando. Detesto deixar as pessoas chorando."
Nesta semana, muita gente chorou por Compay. Las flores de la vida...

 
Por falar em humanismo: acaba de estrear um filme fora do comum em Cuba. "Suite Habana", de Fernando Pérez. Três mil pessoas lotam todos os dias o Cine Chaplin, na capital cubana, para ver um documentário... sem diálogos. Sinal dos tempos, os filmes de ficção em cartaz na cidade não atraem nem metade desse público.
O mais extraordinário é que "Suite Habana" é tudo, menos um filme que faz concessões narrativas. Pérez segue, por 24 horas, o cotidiano de uma dezena de habitantes de Havana. Um trabalhador de estrada de ferro que sonha em ser músico. Uma velha que vende amendoins na rua e não sonha mais. Um travesti. Um arquiteto que opta por abandonar sua profissão para cuidar do filho atingido pela síndrome de Down. Um jovem bailarino. Vidas que se cruzam em pinceladas de extrema delicadeza.
Imagens e sons se conjugam como raramente se vê na tela. O milagre de "Suite Habana" surge do fato de que, mesmo sem que palavras sejam proferidas, temos a sensação de que, no final dos 80 minutos de projeção, conhecemos intimamente as pessoas que Fernando Pérez retratou de forma tão respeitosa e pouco impositiva. Através delas, desenha-se o contorno de todo um país.
É um cinema que não se dobra a nenhuma escola. Às vezes é puro documentário, às vezes é mais próximo da arquitetura proposta por Flaherty em "O Homem de Aran" ou "Nanook". Talvez o primo mais próximo de "Suite Habana" seja um documentário que também respeita como poucos aqueles que retrata: "Edifício Master", de Eduardo Coutinho. Uma obra em que, ao contrário do filme de Pérez, a palavra é fundamental. É a prova de que artistas podem chegar a resultados semelhantes trilhando caminhos diferentes.
Tomás Gutiérrez Alea, autor do extraordinário "Memórias do Subdesenvolvimento", dizia que "o que pode interessar de Cuba, dentro e fora de seus limites, é aquilo que há de mais cubano nas nossas manifestações, e a sinceridade como nos situamos frente aos nossos problemas". Vale para "Suite Habana". Compay Segundo estaria provavelmente de acordo.


Texto Anterior: "Genet - Uma Biografia": Epítetos de Genet dificultam biografia
Próximo Texto: Panorâmica - Música 1: Jackson Five se reúne para disco e shows
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.