|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
O espaço negativo
É provável que o visitante
da exposição de obras do
acervo da Tate na Oca do Ibirapuera não preste muita atenção
às duas esculturas que representam a artista inglesa Rachel Whiteread na mostra. É natural.
As duas obras não passam de
moldes do interior de um colchão
de ar e das superfícies do chão e
do teto de um cômodo, em resina
e borracha de poliuretano. Não
passaria pela cabeça de ninguém
em sã consciência dizer que são
obras de uma das artistas mais
originais e inovadoras desta virada de século.
E não é que são? Para entender
a importância de Whiteread, 40, é
preciso seguir seu percurso desde
as primeiras esculturas, criadas a
partir de objetos domésticos no final dos anos 80, até os grandes
moldes negativos de espaços arquitetônicos, que ela desenvolveu
ao longo dos anos 90. Whiteread
pode estar condenada pelo resto
dos seus dias a ser uma artista de
uma idéia só, mas não é pouco ter
apenas uma grande idéia na vida, se for do tamanho dessa.
A grande idéia de Rachel Whiteread foi dar matéria e visibilidade ao espaço negativo, ao que
existe entre as coisas, ao vazio em
torno delas ou no interior delas,
ao que não é as coisas. E, nesse
sentido, os trabalhos expostos na
Oca de fato são exemplos pouco
significativos.
Em 1993, a escultora encheu de
concreto o interior de uma velha
casa operária condenada à demolição numa rua em Bow, na
zona leste de Londres. Quando as
paredes caíram, surgiu no interior um bloco cinza compacto, reproduzindo a forma da casa como um fantasma do que já não
existia. O projeto, chamado
"House", ficou em exposição por
dois meses e meio e fez de Whiteread uma celebridade internacional da noite para o dia.
Em 2000, ela inaugurou um outro bloco de concreto, de aspecto
monolítico, num espaço público:
o monumento às vítimas do Holocausto, na Judenplatz, em Viena. O monumento é o molde negativo do avesso de uma biblioteca, como se as paredes tivessem sido arrancadas de uma sala coberta de estantes, deixando à vista o
fundo das estantes e a parte oposta das lombadas dos livros, as
prateleiras e as bordas das páginas dos livros fechados e petrificados. Como em "House", o corpo e
a superfície da escultura compacta são definidos pelas paredes que
supostamente envolviam a área e
já não existem. A máscara mortuária das coisas.
A simbologia da biblioteca é óbvia, a começar pela referência à
queima de livros em praça pública pelos nazistas. Mas não é isso o
que mais importa.
A própria descrição das obras
de Whiteread é difícil. Ela vira o
mundo do avesso. Transforma o
mundo físico, com seus objetos e
construções, na forma da qual tira a representação do invisível e
do imaterial.
Ela esculpe a falta e o vazio,
transforma em material o espaço
entre as coisas (os quartos de um
apartamento são dispostos como
blocos compactos alinhados dentro de uma galeria; o interior de
uma caixa d'água é convertido
em resina translúcida e exposto
no lugar da caixa d'água etc.), as
áreas passam a ser definidas e ganham materialidade pelo que
lhes é exterior ou interior, um espaço em que o homem já não pode entrar, em que já não cabe,
embora lhe seja estranhamente
familiar, um mundo-fóssil, e é o
que mais desorienta o espectador.
Em 2001, a artista comprou o
prédio de uma antiga sinagoga
transformada em depósito e começou a fazer moldes do interior.
Hall, porão, lances de escadas,
plataformas, andares, corredores,
tudo ganhou uma representação
em negativo, análoga à da fotografia: nessas esculturas, os espaços vazios ficam cheios e o que antes era material e compacto agora
inexiste.
Quem brincou na infância de
andar pela casa olhando para um
espelho nas mãos virado para cima (para criar a ilusão de estar
caminhando de cabeça para baixo, de estar pisando no teto, como
se o mundo estivesse de pernas
para o ar) pode ter uma idéia do
que significa deparar com uma
dessas enormes esculturas.
A confusão é completa. É como
se tudo tivesse se invertido de repente. E o pior é que, ainda assim,
essa inversão permite um resquício de reconhecimento sinistro.
Temos a impressão de que sabemos o que está diante de nós, mas
não conseguimos nomeá-lo. Não
conseguimos entender o que é que
reconhecemos. O mundo saiu dos
eixos.
Nas "escadas" expostas em diversas galerias, esse efeito sofre
um processo de exponenciação
pela disposição da peça, pelo fato
de os degraus estarem deitados,
ziguezagueando pelo chão, ou subindo para o alto, invertidos, para lugar nenhum, como um imenso totem caído ou altar. Dois lances de escada levam a um segundo andar, mas você já não sabe
onde é em cima e onde é embaixo.
Um crítico definiu essa sensação
como "andar em torno de uma
esfinge geométrica" -e não apenas pela forma das esculturas,
mas pelo enigma e a desorientação que a forma negativa produz.
O que Rachel Whiteread põe em
questão é a própria possibilidade
da representação. O que nós vemos é resultado de uma série de
convenções que, uma vez invertidas, já não nos permitem entender, mas provocam um estado de
perturbação e mal-estar.
Somos incapazes de ver o avesso
das coisas. E o mundo pode ser o
exato oposto do que acreditamos
que ele é.
Texto Anterior: Documentário: Almodóvar exibe suas lágrimas e risos Próximo Texto: Literatura: Age de Carvalho esculpe novas elipses Índice
|