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São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 2003

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BERNARDO CARVALHO

O espaço negativo

É provável que o visitante da exposição de obras do acervo da Tate na Oca do Ibirapuera não preste muita atenção às duas esculturas que representam a artista inglesa Rachel Whiteread na mostra. É natural.
As duas obras não passam de moldes do interior de um colchão de ar e das superfícies do chão e do teto de um cômodo, em resina e borracha de poliuretano. Não passaria pela cabeça de ninguém em sã consciência dizer que são obras de uma das artistas mais originais e inovadoras desta virada de século.
E não é que são? Para entender a importância de Whiteread, 40, é preciso seguir seu percurso desde as primeiras esculturas, criadas a partir de objetos domésticos no final dos anos 80, até os grandes moldes negativos de espaços arquitetônicos, que ela desenvolveu ao longo dos anos 90. Whiteread pode estar condenada pelo resto dos seus dias a ser uma artista de uma idéia só, mas não é pouco ter apenas uma grande idéia na vida, se for do tamanho dessa.
A grande idéia de Rachel Whiteread foi dar matéria e visibilidade ao espaço negativo, ao que existe entre as coisas, ao vazio em torno delas ou no interior delas, ao que não é as coisas. E, nesse sentido, os trabalhos expostos na Oca de fato são exemplos pouco significativos.
Em 1993, a escultora encheu de concreto o interior de uma velha casa operária condenada à demolição numa rua em Bow, na zona leste de Londres. Quando as paredes caíram, surgiu no interior um bloco cinza compacto, reproduzindo a forma da casa como um fantasma do que já não existia. O projeto, chamado "House", ficou em exposição por dois meses e meio e fez de Whiteread uma celebridade internacional da noite para o dia.
Em 2000, ela inaugurou um outro bloco de concreto, de aspecto monolítico, num espaço público: o monumento às vítimas do Holocausto, na Judenplatz, em Viena. O monumento é o molde negativo do avesso de uma biblioteca, como se as paredes tivessem sido arrancadas de uma sala coberta de estantes, deixando à vista o fundo das estantes e a parte oposta das lombadas dos livros, as prateleiras e as bordas das páginas dos livros fechados e petrificados. Como em "House", o corpo e a superfície da escultura compacta são definidos pelas paredes que supostamente envolviam a área e já não existem. A máscara mortuária das coisas.
A simbologia da biblioteca é óbvia, a começar pela referência à queima de livros em praça pública pelos nazistas. Mas não é isso o que mais importa.
A própria descrição das obras de Whiteread é difícil. Ela vira o mundo do avesso. Transforma o mundo físico, com seus objetos e construções, na forma da qual tira a representação do invisível e do imaterial.
Ela esculpe a falta e o vazio, transforma em material o espaço entre as coisas (os quartos de um apartamento são dispostos como blocos compactos alinhados dentro de uma galeria; o interior de uma caixa d'água é convertido em resina translúcida e exposto no lugar da caixa d'água etc.), as áreas passam a ser definidas e ganham materialidade pelo que lhes é exterior ou interior, um espaço em que o homem já não pode entrar, em que já não cabe, embora lhe seja estranhamente familiar, um mundo-fóssil, e é o que mais desorienta o espectador.
Em 2001, a artista comprou o prédio de uma antiga sinagoga transformada em depósito e começou a fazer moldes do interior. Hall, porão, lances de escadas, plataformas, andares, corredores, tudo ganhou uma representação em negativo, análoga à da fotografia: nessas esculturas, os espaços vazios ficam cheios e o que antes era material e compacto agora inexiste.
Quem brincou na infância de andar pela casa olhando para um espelho nas mãos virado para cima (para criar a ilusão de estar caminhando de cabeça para baixo, de estar pisando no teto, como se o mundo estivesse de pernas para o ar) pode ter uma idéia do que significa deparar com uma dessas enormes esculturas.
A confusão é completa. É como se tudo tivesse se invertido de repente. E o pior é que, ainda assim, essa inversão permite um resquício de reconhecimento sinistro. Temos a impressão de que sabemos o que está diante de nós, mas não conseguimos nomeá-lo. Não conseguimos entender o que é que reconhecemos. O mundo saiu dos eixos.
Nas "escadas" expostas em diversas galerias, esse efeito sofre um processo de exponenciação pela disposição da peça, pelo fato de os degraus estarem deitados, ziguezagueando pelo chão, ou subindo para o alto, invertidos, para lugar nenhum, como um imenso totem caído ou altar. Dois lances de escada levam a um segundo andar, mas você já não sabe onde é em cima e onde é embaixo. Um crítico definiu essa sensação como "andar em torno de uma esfinge geométrica" -e não apenas pela forma das esculturas, mas pelo enigma e a desorientação que a forma negativa produz.
O que Rachel Whiteread põe em questão é a própria possibilidade da representação. O que nós vemos é resultado de uma série de convenções que, uma vez invertidas, já não nos permitem entender, mas provocam um estado de perturbação e mal-estar.
Somos incapazes de ver o avesso das coisas. E o mundo pode ser o exato oposto do que acreditamos que ele é.

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