São Paulo, quinta-feira, 19 de agosto de 2004

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LATINOS

Sem diálogos, documentário ganha o público ao apresentar personagens em cenas cotidianas

Filme mostra Havana dos "não- heróis"

DA ENVIADA A GRAMADO

Hábito dos últimos anos, a competição latina empalideceu novamente a brasileira no Festival de Gramado. Mais aplaudido filme até aqui, o longa cubano "Suite Habana", de Fernando Perez, roubou a cena na segunda noite da mostra, anteontem.
Representante do título no festival, a assistente de direção Gloria Maria Cossío preparou a platéia para o encontro com "um filme estranho", que elegeu retratar, entre "as muitas Havanas possíveis", aquela dos que "aparentemente não são heróis". A platéia aceitou o convite.
"Suite Habana" é um documentário sem diálogos, que narra as histórias de seus personagens com uma excepcional montagem de cenas cotidianas. Não há nada no filme do retrato comum aos documentários sobre Cuba: a miséria domesticada pela inexplicável e contagiante alegria do povo. "Suite Habana" é triste, sombrio e, mais do que tudo, respeitoso com as vidas que aborda.
Entre um despertar (do garoto Francisquito) e o adormecer (dos demais personagens do filme), o que se vê na tela são corpos em movimento, numa repetição das tarefas diárias -limpar, cozinhar, estudar, trabalhar, contornar a falta de dinheiro, vendendo amendoins na rua ou "vigiando" a estátua de John Lennon, entre outros exemplos.
Pelas bordas da rotina é que se insinuam as aspirações de todos; os dotes artísticos de alguns, como o do dublê de pedreiro e bailarino, o do músico que conserta estradas de ferro; e as "transgressões" de poucos, como a do funcionário de hospital que se traveste em drag queen.
Perto do fim, "Suite Habana" deixa de lado seus personagens, para registrar uma ressaca na orla do Malecón. E o diretor parece encontrar numa literal "água mole em pedra dura" a tradução para o instinto de prosseguir, a despeito de qualquer barreira.
Menos sutil é o recado de "Araguaya - A Conspiração do Silêncio", competidor brasileiro apresentado na mesma noite. O filme de Ronaldo Duque, que subiu ao palco carregando uma bandeira do Brasil, trata da luta armada de civis contra as forças do regime militar brasileiro no fm dos anos 60 e início dos 70, na região amazônica.
Com início documental -em depoimentos do atual presidente do PT, José Genoino, e de João Amazonas (1912-2002), entre outros-, o filme se desloca sucessivamente para um relato intimista da vida dos guerrilheiros nos povoados e uma encenação à drama de guerra de sua luta na floresta.
O elenco (o transplantado Northon Nascimento, presente ao festival, Françoise Forton, Fernanda Maiorano, Danton Mello, entre outros) opta por interpretações intensas dos jovens idealistas. Intensas demais.
A maior excentricidade da noite, no entanto, ficou com o curta "Felicidade" (PR), de Emerson Schmidlin. Sobre duas rochas no mar, um homem (Austregésilo Carrano, autor do livro "Canto dos Malditos", no qual se baseia o longa "Bicho de Sete Cabeças", de Laís Bodanzky) e uma mulher (Cristiane Esteves), inteiramente nus, esbravejam um para o outro um texto em que discorrem sobre a imensa, intransponível, insuportável felicidade que sentem. Este sim é estranho.


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