São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.

CINEMA

Crítica/"Violência Gratuita"

Haneke provoca os EUA em releitura com tom irônico

Em "Violência Gratuita", diretor alemão repete diálogos e planos do original de 1997, com elenco e idioma diferentes

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

A prática da refilmagem é quase tão antiga quanto o próprio cinema, mas hoje tende a ser vista, sobretudo no domínio da produção industrial pasteurizada, como resposta a um cenário em que rareiam as idéias "novas" -ainda que essas também sejam recicladas, mas pareçam novas, o que faz toda a diferença. No campo do cinema autoral, esteja ele na indústria ou fora dela, costuma-se olhar para o mesmo fenômeno de outra perspectiva: refilmagens ou apropriações de temas, situações e personagens são recebidas no terreno da alusão, da "releitura" e da homenagem. A coisa muda um pouco de figura, entretanto, quando o realizador do original é também o da refilmagem, como Alfred Hitchcock, que rodou "O Homem que Sabia Demais" (1934) na Inglaterra, em preto-e-branco, e 20 anos depois o refez nos Estados Unidos, em cores. Nesse caso, a retomada era não só adaptação a novo tempo e espaço, mas também uma espécie de aperfeiçoamento. A seqüência culminante do concerto, na versão de 1956, expressa dois fatores importantes: o amadurecimento do próprio Hitchcock como contador de histórias e o uso de mais recursos, humanos e materiais. Não é essa, contudo, a trilha percorrida pelo austríaco Michael Haneke em "Violência Gratuita", refilmagem do longa-metragem de mesmo título brasileiro que ele escreveu e dirigiu em 1997 (no original, a primeira versão se chamava "Funny Games", jogos divertidos; a segunda ganhou o acréscimo "U. S.", Estados Unidos). Aqui, Haneke faz com ele mesmo o que Gus van Sant fez com Hitchcock no "Psicose" de 1998, que refilma, enquadramento por enquadramento, o clássico de 1960. O novo "Violência Gratuita" tem, com exceções pontuais de pouca relevância para o conjunto, os mesmos enquadramentos e diálogos do original austríaco.
Terapia de choque
Muda a geografia (estamos à beira de um lago em Long Island, na costa leste dos EUA, e não na Europa), o idioma (o inglês substitui o alemão) e o elenco (que trazia, no primeiro longa, Ulrich Mühe). Os ingleses Naomi Watts ("21 Gramas", "King Kong") e Tim Roth ("Cães de Aluguel") interpretam o casal que se instala, com o filho pequeno, em sua casa de campo. Mal chegam, e recebem a visita de dois jovens que parecem estar hospedados nos vizinhos. O pesadelo inominável que se segue respeita a mesma terapia de choque (nos personagens e no espectador) proposta por Haneke no original, em chave irônica e auto-referente que, no tratamento das imagens de violência na cultura contemporânea, lembra "O Vídeo de Benny" (1992), seu segundo longa, também agudo. O mal-estar burguês contemporâneo, o incômodo com o outro (em especial, se pertencer a outra cultura) e o papel do acaso na vida, trabalhados por ele em filmes como "O Sétimo Continente" (1989), "Código Desconhecido" (2000) e "Caché" (2005), também funcionam aqui como pilares. Tudo isso já valia para o original. Por que a refilmagem "literal", uma década depois, exceto pela eventual provocação aos EUA, à moda Lars von Trier? O espectador leva a dúvida para casa, e talvez seja mesmo o que Haneke esperava.

VIOLÊNCIA GRATUITA
Produção: EUA, 2007
Direção: Michael Haneke
Com: Naomi Watts e Tim Roth
Quando: estréia hoje nos cines Reserva Cultural, Bristol e circuito
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 16 anos
Avaliação: regular



Texto Anterior: Crítica/"Casa da Mãe Joana": Comédia sobre malandragem brasileira perde força com estrutura de sitcom
Próximo Texto: Crítica/"Brigada...": Documentário erra ao focar questão técnica
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.