São Paulo, sábado, 19 de setembro de 2009

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ANTONIO CICERO

Pensar o mundo


Raramente, exceto em poesia, dir-se-ia "penso uma rosa" ou "penso Marcelo"


ANOS ATRÁS , um dos admiráveis ciclos de conferências concebidos e organizados por Adauto Novais intitulava-se "Poetas que Pensaram o Mundo". Sempre gostei desse título.
A sintaxe presente na expressão "pensar o mundo" não é corriqueira ou normal. Normalmente diríamos "pensar SOBRE o mundo". Não é que seja gramaticalmente incorreto dizer "pensar o mundo"; apenas, não se trata de uma construção comum. O verbo "pensar" pode ser intransitivo, transitivo direto ou transitivo indireto. Como transitivo direto, porém, seu objeto é normalmente (1) uma oração substantivada (por exemplo, "eles pensam que a terra é plana"), (2) um verbo ("penso sonhar"), ou (3) um nome ou um pronome com função adverbial ("penso isso" por "penso assim"; "penso o contrário" por "penso de modo contrário").
Em geral, é somente como transitivo indireto que o objeto do verbo "pensar" pode ser um nome, de modo que se diz "penso numa (ou sobre) uma rosa" ou "penso em (ou sobre) Marcelo", mas raramente, exceto em poesia, dir-se-ia "penso uma rosa" ou "penso Marcelo".
Em francês, tais construções são mais comuns do que em português, de modo que não é raro encontrarem-se títulos de livros ou artigos contendo o sintagma "penser l'être" (pensar o ser) ou "penser l'homme" (pensar o homem). Mesmo em francês, porém, essa expressão é, segundo o monumental "Trésor de la Langue Française", que cita, a propósito, textos de Sartre, de Merleau-Ponty e de Alain, usada "sobretudo no domínio da reflexão, do conhecimento científico e filosófico".
Ora, não creio que a construção tradicional, em que o verbo "pensar", ao ter por objeto um nome, é transitivo indireto, construção que também se encontra nas demais línguas indoeuropeias que conheço, seja arbitrária. Parece-me que lhe subjaz uma concepção do pensamento como um ato dotado da estrutura de uma proposição, de uma sentença, de um juízo. Nesse sentido, pensar numa coisa ou sobre uma coisa é fazer para si mesmo um juízo a respeito dela: de que ela existe e/ou de que tem tais ou quais propriedades e/ou de que tem tais ou quais relações com tais ou quais coisas. Normalmente concebemos o pensamento, portanto, como primariamente discursivo ou dianoético, como dizia Aristóteles, e não como intuitivo ou noético. A preposição "em" ou "sobre", quando digo "penso numa rosa" ou "penso sobre uma rosa" funciona como uma marca verbal do caráter mediado da relação do meu pensamento com a rosa. Interpondo-se entre o pensamento e a rosa, ela, por um lado, os separa e, por outro, os reúne. É desse modo que funciona o pensamento filosófico.
Pode-se dizer que, quando a palavra "mundo" significa a totalidade do pensável tomada como uma totalidade, então "pensar sobre o mundo" é filosofar. Mas, e "pensar o mundo"? Nesse caso, a abolição da preposição sugere a abolição da separação e da mediação entre o pensamento e a coisa pensada. É como se o pensamento não pretendesse ficar SOBRE, isto é, acima ou, de algum modo, "fora" do mundo, para pensá-lo. É como se ele ou bem se situasse no mundo pensado, ou bem como se apreendesse o mundo enquanto pensamento. Tal seria um pensamento intuitivo e noético, isto é, uma intuição intelectual. Nesse sentido, pensar o mundo afigura-se inteiramente diferente de pensar sobre o mundo e, portanto, de filosofar.
Entretanto, se, como foi dito há pouco, a construção em que o objeto direto do verbo "pensar" é um nome, como em "pensar o mundo", parece ser de origem filosófica, pode-se questionar se não será ilusória a distinção que acabo de desenhar. Parece-me que não. Dos três pensadores citados pelo "Trésor", dois, Sartre e Merleau-Ponty, são fenomenólogos. Ora, a fenomenologia criticava exatamente a relação excessivamente mediada estabelecida pela filosofia tradicional entre o pensamento e seu objeto intencional. Ela pretendia, portanto, voltar a uma intuição direta e pura dos objetos. Pois é precisamente essa relação intuitiva do pensamento com seu objeto intencional que os filósofos citados pretendem exprimir ao tornar direta a transitividade normalmente indireta do verbo "pensar". Portanto, ainda que originada no discurso filosófico, essa sintaxe foi concebida para exprimir ambição cognitiva oposta à da filosofia tradicional.
De qualquer maneira, trata-se de uma construção admiravelmente apta a exprimir a ambição poética do pensar intuitivo. Melhor dizendo: ela poeticamente revela a diferença específica do pensamento poético.


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