São Paulo, sábado, 19 de setembro de 1998

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MOSTRARIO
Nelson Rodrigues baixa em Pedro Almodóvar

LUIZ CAVERSAN
Diretor da Sucursal do Rio

Depois de um melodrama em que não escondia totalmente seu talento, mas enchia a paciência até dos próprios fãs ("A Flor de Meu Segredo", de 1995), o cineasta espanhol Pedro Almodóvar parece que foi a um terreiro de umbanda, recebeu Nelson Rodrigues de frente e realizou um dos seus melhores filmes.
"Carne Trêmula" tem ingredientes de sobra para fazer vibrar os aficionados do dramaturgo carioca e, ao mesmo tempo, encantar quem não esquece jamais "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", "Ata-me" e "Kika".
O filme, que será apresentado ao longo do fim-de-semana na MostraRio, resgata todas as melhores características de Almodóvar, bem como as suas mais marcantes idiossincrasias.
Eis a que se assiste em uma hora e 40 minutos na sala escura: exageros típicos nos cenários e figurinos multicoloridos, firme e forte direção de atores, diálogos a um só tempo comoventes, hilários ou absurdos, "timing" cinematográfico identificável em raras produções hoje em dia, domínio de luz e movimentos e enquadramentos de câmara geniais.
Tudo para dar vida a uma trama inacreditável, tirada de um romance de Ruth Rendell. A saber: Victor (Liberto Rabal) é filho de uma prostituta, mas tem excelente índole, apesar de viver na lama aos 20 anos. Transou com a burguesinha maluquete Elena (Francesca Neri) e quer mais. Mas ela estava doidona e não se lembra de nada.
Ele insiste. Ela o rechaça. Os dois se atracam. Surge uma arma, que vai parar nas mãos de Victor.
Dois policiais são requisitados. Tentam o acordo, mas o tira Sancho (Pepe Sancho) está de porre e parte para a porrada. Um tiro é disparado e atinge a espinha do outro policial, David (Javier Bardem).
David fica paraplégico (torna-se ídolo na seleção paraolímpica de basquete) e casa-se com Elena. Victor vai para a cadeia, e Sancho retorna para sua vidinha normal, na qual continua a encher de uísque a própria cara e de bolacha a da mulher, Clara (a excelente e rediviva Angela Molina). Tudo isso é apenas o começo, consome se muito um quinto do filme, mas dá início às implicações rodrigueanas.
Essas passam a se desenrolar de forma mais intensa quando Victor sai da cadeia e começa a perseguir Elena, ao mesmo tempo em que se torna amante de Clara e é espionado por David, enquanto Sancho continua na dobradinha álcool-porrada na mulher.
Daí em frente, é sexo, amor, separação, desconfiança, sonhos, culpas, vinganças, alegrias fortuitas, ameaças, lágrimas, promessas, traições e mortes. Bem ao estilo barroco e overdosado de Almodóvar, que tem uma capacidade única de saltar da tragédia para o lirismo e deste para o humor, retornando logo para o drama profundo, como se estivesse se divertindo muito com os sobressaltos que causa no espectador mais desavisado. Como já notou o crítico Amir Labaki, em "Carne Trêmula" Almodóvar acertou a mão.
Acertou em cheio e, além de fazer cinema de alta qualidade, ainda contempla as platéias femininas e masculinas com o bifão Liberto Rabal, que passa a ocupar o trono que já foi do agora mascarado (ele virou o Zorro, não?) Antonio Banderas, e com a encantadora Francesca Neri. Em tempo: a trilha sonora é ótima.



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