São Paulo, sábado, 19 de setembro de 1998

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Zappa chega em doses mensais e quase completo ao Brasil

FÁBIO MASSARI
especial para a Folha

Atenção amantes dos bons sons e diletantes de carteirinha: não deixem de se matricular em um dos mais explosivos e completos cursos sobre a boa música do século.
O delírio de interdisciplinaridade você encontrará no pacotão Frank Zappa, que a gravadora Eldorado colocou desde o mês passado no mercado. Os discos saíram com o carimbo da Rykodisc americana, que, com o Zappa Family Trust, administra o legado do músico. Na semana que vem, chegam os CDs "Apostrophe", "Does Humor Belong in Music?", "Hot Rats" e "One Size Fits All".
Serão lançados aproximadamente 60 títulos -o catálogo oficial quase completo-, em ritmo de quatro por mês.
Trata-se de uma iniciativa de mercado inédita e louvável, principalmente se considerarmos o perturbador fator de risco de uma operação desse porte, por ser um produto difícil como Zappa.
Quem vai tocar? Será que quem gosta já não tem os discos? Sem divagações: nada disso vale para Zappa. Essa é a primeira vez que a obra do compositor merece esse tipo de tratamento correto. Decência afinal. Respeito.
Em aproximadamente um ano e meio, ao custo de cerca de R$ 1.500, você será conduzido pelo maestro Zappa, pela labiríntica e quase sempre surrealista visão da história musical contemporânea.
Não faltará diversão. Por conta de suas críticas impagáveis, não faltarão as deliciosas hecatombes orgânicas detonadas pelos seus delírios musicais e estéticos.
Os discos não serão lançados em ordem cronológica, possibilitando ao consumidor e ao aluno contatos transversais com a obra "caleidoscópica" do binômio nariz-bigode mais emblemático do rock'n'roll.
A esta altura do campeonato, você já ouviu falar que Zappa foi um gênio e que bateu de frente com "establishments" e tradições para garantir sua liberdade de fazer e de dizer o que quisesse.
Em tempos de vacas confusas no rebanho sonoro do nosso fim de século, ouvir Frank Zappa é uma espécie de bálsamo milagroso. Conheça abaixo os discos do primeiro pacote.

² "Zoot Allures' (76)
É um clássico tardio da enorme discografia de Zappa. Precedido por discos essenciais como "One Size Fits All" e "Bongo Fury", o álbum não foi uma unanimidade na época. Mas o tempo lhe garantiu um lugar especial entre os fãs.
Captain Beefheart quase participou e dois dos fotografados na capa, Eddie Jobson e Patrick O'Hearn, não estão no disco.
É um álbum de grandes momentos. A faixa-título abriu muitas apresentações de Zappa e "Black Napkins", gravada ao vivo no Japão, é uma das inúmeras pérolas do repertório zappiano.
Destaque para a cultuada "The Toratuare Never Stops", dedicada ao amigo de infância Don Van Vliet, o Captain Beefheart. Maestria nos overdubs nesse mergulho nas profundezas da solidão humana e... sussurros, gritinhos e espasmos sexuais... sem comentários.

² "The Grand Wazoo' (72)
No começo dos anos 70, o Rainbow Theatre de Londres serviu de palco para um show mais do que especial de Frank Zappa. Um show capital, em muitos sentidos, para o músico. Foi ali que um fã enciumado arremessou Frank para fora do palco, colocando-o em uma cadeira de rodas por um bom tempo (e contribuindo para acentuar a acidez de suas idéias). "The Grand Wazoo" é o disco da convalescência de Zappa. Um grande disco.
Com delirante capa do parceiro gráfico de Zappa, Cal Shenkel, o disco é um dos "conceituais" das obras zappianas. Trata da lenda de Cletus Awreetus-Awrightus e seu exército de músicos e das batalhas contra os Mediocratas da Orquestra de Pedestrium.
A faixa-título é grandiosa, espetacular arranjo de big band razoavelmente descontrolada com grandes participações individuais. Aliás, o disco conta com pesos pesados, como o baterista Ainsley Dunbar e o tecladista de jazz George Duke.
"Blessed Relief" é um bom momento do disco, com destaque para o trompete de Sal Marquez e para o histórico baixista Erroneous.
Uma viagem musical fora do tempo. Disco obrigatório.

² "Sheik Yerbouti' (79)
Provavelmente o mais conhecido disco de Frank Zappa. Chegou ao 21º lugar na parada americana e ao 32º, na inglesa. Disco de ouro. Uma espécie de triunfo pessoal para Zappa, com sobras para o ventilador de quase todo o mundo.
Mais um primor de produção sobre uma estrutura ao vivo, com direito a registros de shows no lendário Hammersmith Odeon londrino, palco de grandes apresentações de Zappa.
É um disco de rock com um pouco de tudo: do tango ao gospel, mais funk, disco, metal (?)...
Brilham muito o baterista Terry Bozzio, o baixista Patrick O'Hearn e o guitarrista Adrian Belew (David Bowie e King Crimson). Zappa está inspiradíssimo.
É um disco de inúmeras "prediletas", de vários "sucessos" e de alguns parênteses guitarrísticos de arrepiar. Sátiras, avacalhações e derivados dão o recado.
Destaques? "Rat Tomago", "Yo Mama" e "I Have Been In You". E também "Dancing Fool", "Jewish Princess" e "Jones Crusher".

² "Cheap Thrills' (98)
No meio deste ano, a Rykodisc "elevou" à categoria de "mid price" 20 títulos do catálogo zappiano. Como suporte "estratégico", bolou a coletânea "Cheap Thrills", 40 e tantos minutos de momentos especiais de Zappa, mais faixa interativa, por preço camarada.
Primeiro as más notícias: o disco sai por aqui com preço normal e vem embaladíssimo em uma "briga" comprada por fãs radicais.
A reclamação é simples e procede: até agora, pouco se viu de realmente inédito e precioso dos vastos arquivos de Zappa.
É coletânea em cima de coletânea, com material que pode ser garimpado em edições antigas, limitadas etc.
Os incontáveis registros de shows, experimentações de estúdio, jams, trilhas continuam trancados a várias chaves.
A boa notícia? É uma excelente coletânea.
Só a megalista dos músicos ouvidos no disco já causa espanto: Captain Beefheart, Terry Bozzio, George Duke, Fowler Bros., Howard Kaylan (Turtles), Don Preston, Ike Willis, Steve Vai...
São, em sua grande maioria, clássicos em versões alternativas. Destaque para a versão original (altamente intoxicada) de "The Torture Never Stops", com Captain Beefheart, e para a versão ao vivo de "Joe's Garage".
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Fábio Massari, 34, é VJ da MTV Brasil e apresentador do programa "Lado B".



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