São Paulo, sábado, 19 de setembro de 1998

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LIVRO - LANÇAMENTOS
Escritores tiram do forno seus pratos quentes

NINA HORTA
especial para a Folha

Escritores, sociólogos, antropólogos, historiadores, repórteres entraram na onda dos livros de cozinha. Isso está acontecendo no mundo inteiro.
Aqui, como damos apenas os primeiros passos nesse filão editorial, os autores ainda parecem com medo de mostrar a cara toda, pois não conhecem bem seu público.
Imaginam (nem todos) que nós, leitores, devemos ser tratados com a maior delicadeza, pois qualquer dificuldade pode ferir de morte nosso QI de ostra.
O leitor, ele próprio, já é um ser em franca extinção, como cutucá-lo com vara curta e obrigá-lo a pensar ou cozinhar por mais de cinco minutos?
Autores, chega. Agora já temos o básico. Podem vir quentes que estamos fervendo.
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Inveja
Vamos às novidades. "As Ervas na Cozinha", de Rosy L. Bornhausen (edit. Bei, R$ 29,90, 222 págs.). Tenho um problema com a linguagem de Rosy Bornhausen, que já escreveu um best seller, "Ervas do sítio". Acho que é inveja.
R.L.B. tem conhecimento de causa, bom gosto, simplicidade, virtudes que aprecio sobre todas as outras, mas fala como se vivesse em outra época, outra galáxia romântica e feliz. Cozinhar é uma aventura linda e saborosa, cheia de amor. As ervas são plantas com características próprias, maravilhosas.
"Perfumadas, lindas, com cores e aromas deslumbrantes, são o mais belo presente que Deus nos deu através da natureza." "(...) Com elas, limpamos e perfumamos a casa, da cozinha até a sala, passando por quartos e banheiros."
E não vale o argumento da autora de que escreve assim bonito, porque é dona de casa, avó e mãe. Quase toda mulher é. Rosy precisa acabar com tanto mimo e frescura, jogar fora a cestinha de violeteira e, no próximo livro, vir a campo mostrando a guerreira que deve ser, botando a boca no mundo, quebrando a redoma do herbário e da biblioteca e mostrando o que sabe para adultos.
Com todas as malcriações de leitora ranzinza, o livro vale pelas receitas fáceis e, principalmente, por estar introduzindo aos brasileiros alguma coisa mais do que os sagrados alho, cebola, salsa e cebolinha. Por obra e graça da autora, já estamos há algum tempo comendo dill, estragão, borago, chaguinha...
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PhD em botânica
Outro livro é "O Saber do Sabor", de Gil Felippe (edit. Salamandra, R$ 35, 193 págs.). Pois não é que o senhor Gil Felippe, PhD em botânica pela Universidade de Edinburgo, professor-titular em Campinas, pesquisador da seção de fisiologia e bioquímica do Instituto de Botânica de São Paulo, parece achar que sua fascinante matéria cairia pesada na cabeça do cozinheiro médio?
Fez um livro com ilustrações magníficas de Maria Cecília Tomasi e uma brincadeira que, segundo ele, funcionaria do modo seguinte: "Assim surgiu a idéia deste livro: transferir meus conhecimentos como professor de botânica através de receitas de pratos saborosos. O livro é, portanto, sobre botânica básica e se utiliza de receitas culinárias como motivação e forma de interação com o leitor".
É um truque. Para que o leitor de cerebelo sensível, aguente o nome científico do espinafre, Gil Felippe escreve boas, pequenas, fáceis receitas inglesas e brasileiras com notas de rodapé "científicas", esclarecendo sobre os ingredientes principais em letra miúda.
O engraçado é que nos livros ingleses dos quais deve ter sofrido boa influência a brincadeira é sempre ao contrário. É só ver as excelentes obras de Alan Davidson sobre peixes e frutas, nada acadêmicas, confiáveis ao extremo, com a receita espremida lá no fim, no rodapé, no lugar dela naquele contexto, com muito orgulho.
Senhor Gil Felippe, queremos volumes e mais volumes exaustivos sobre o assunto, com as mesmas ilustrações perfeitas. Precisamos conhecer nossos ingredientes, diferenciar as monocotiledôneas das dicotiledôneas, queremos os nomes em quatro línguas (é importante saber que aquilo lá é aquilo aqui). E queremos, ou melhor, quero, gostaria, por favor, da receita esmigalhada no rodapé.
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Bê-á-bá para homens
E mais um! Para principiantes! "Guia para Sobrevivência do
Homem na Cozinha", de Alessandra Porro (edit. Objetiva, R$ 21, 228 págs.). Sorte dos principiantes. Sugestões para homens que moram sozinhos e querem cozinhar bem poucas quantidades.
Começa com o bê-á-bá, explicações sobre baterias de cozinha, ingredientes, sugestões, tudo o que é preciso para manter o equilíbrio na hora de fazer uma refeição.
Mas, perceberam? É um guia para sobrevivência do homem, e as mulheres que se danem. Truque, também.
Só para o livro ficar mais engraçadinho, é claro, com receitas para impressionar namoradas, para mostrar a papai e mamãe que o cozinheiro se cuida, para curar ressacas solitárias.
Bobagens, esses recursos. Fica mais engraçadinho, mas também corre o perigo de ficar mais ordinário. Não precisava. É um bom livro de sobrevivência para homens e mulheres, agradável de se ler, receitas honestas e fáceis.
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Aula de francês
E agora "O Prazer da Mesa", de Mireille Richter (Arte e Ofícios, R$ 21, 270 págs.). Terceiro livro da autora em formato de aulas de cozinha francesa com cardápios completos.
Mireille Richter é francesa, radicada no Brasil há mais de 40 anos, e as aulas são de cozinha francesa básica. O interessante é que no meio de tantos livros que aparecem, ora autobiográficos, ora cheios de alusões a amigos, à infância, companheiros de mesa, Mireille se cala (como é difícil agradar o leitor implicante...).
Por que não localizou mais as receitas lacônicas dentro de sua vida de menina francesa, estudando em colégio militar antes da guerra, com casa de verão em Auvergne, onde levantava às 3h para capinar o campo de batatas?
Filha de oficial da aviação francesa, ela enfrenta a guerra com suas restrições alimentares e se casa com um oficial francês que é transferido para o Brasil.
E daí? O livro tem boas receitas, mas esperamos o quinto livro de cardápios, com descrições das batatas sujas de terra, do belo oficial e seu estranhamento ao enfrentar a farinha e o feijão.
Um volume de memórias com receitas de França e Rio Grande do Sul seria enriquecedor para todos nós. É claro, só se Mireille sabe escrever memórias e quer fazê-lo. Senão, estamos muito bem com os cardápios nus e crus.
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Canibalismo
"O Ritual do Jantar", de Margaret Visser, com tradução de Sonia Coutinho, (edit. Campus, R$ 59,90, 434 págs.) não é um livro para principiantes. Até pode ser. Não tem limite de idade. É compacto, cheio de informações sobre modos à mesa, que vão do canibalismo até utensílios modernos de cozinha contemporânea.
Não é livro de prender atenção de cabo a rabo, mas uma boa antologia de tudo que já foi escrito sobre o assunto. Segundo a autora, trata de "como comemos, e o porquê dos modos e maneiras do comer". Nada acadêmico, tem poucos comentários da própria autora, muito útil para consulta, boa bibliografia e um índice muito pequeno para assunto tão vasto.
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Formato, cheiro e cara
Gostei de "Histórias e Receitas", de José Hugo Celidonio, (Ediouro, R$ 39, 304 págs.). Infelizmente, só consegui o xerox e me faz falta enorme o objeto-livro com formato, cheiro e cara. Despretensioso, tem cara, sim, cara do autor, que conheço de longe, quando (obrigada!) trouxe aqui Alain Chapel, o grandiosíssimo Chapel. Então, como é a cara? Alegre, sorridente, feliz, naif, bonitos dentes sob bigodes, prontos a morder o mundo, animadíssimo, empreendedor, restaurateur, bom garfo.
O livro começa lembrando a infância, o lado caipira de fazenda paulista e o percurso trilhado por muitos de nós, durante umas três décadas. Sai pela vida papando bobó de camarão, pudim de clara, rissoles, sanduichinhos para o chá, cuscuz, estrogonofe, pavê de chocolate, laranja com coco.
Homem de bom gosto aprecia fazendas sem piscina e com fogão de lenha. E, em torno desse fogão, vai se tornando um "foodie", influenciado por viagens, amigos, aulas, amizades com grandes chefs.
E o livro vai documentando, como um caderno de receitas meio bagunçado, onde entram
receitas de amigos, origens de nomes de pratos, tudo pelo que o autor se interessou algum dia e julga interessar ao leitor.
Pelo jeito continua o mesmo bon vivant de sempre, e seu livro é como ele, contador e apreciador de histórias de comida, brasileiro, caipira e um tanto francês, espelho de uma época de saltos na culinária mundial. Bocuse, nouvelle, Chapel, Troisgros, novidades que ele nos ajudou a descobrir e deglutir com satisfação.



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