|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVRO - LANÇAMENTOS
Escritores tiram do forno seus pratos quentes
NINA HORTA
especial para a Folha
Escritores, sociólogos, antropólogos, historiadores, repórteres
entraram na onda dos livros de cozinha. Isso está acontecendo no
mundo inteiro.
Aqui, como damos apenas os primeiros passos nesse filão editorial,
os autores ainda parecem com medo de mostrar a cara toda, pois não
conhecem bem seu público.
Imaginam (nem todos) que nós,
leitores, devemos ser tratados com
a maior delicadeza, pois qualquer
dificuldade pode ferir de morte
nosso QI de ostra.
O leitor, ele próprio, já é um ser
em franca extinção, como cutucá-lo com vara curta e obrigá-lo a
pensar ou cozinhar por mais de
cinco minutos?
Autores, chega. Agora já temos o
básico. Podem vir quentes que estamos fervendo.
˛
Inveja
Vamos às novidades. "As Ervas
na Cozinha", de Rosy L. Bornhausen (edit. Bei, R$ 29,90, 222 págs.).
Tenho um problema com a linguagem de Rosy Bornhausen, que já
escreveu um best seller, "Ervas do
sítio". Acho que é inveja.
R.L.B. tem conhecimento de causa, bom gosto, simplicidade, virtudes que aprecio sobre todas as outras, mas fala como se vivesse em
outra época, outra galáxia romântica e feliz. Cozinhar é uma aventura linda e saborosa, cheia de amor.
As ervas são plantas com características próprias, maravilhosas.
"Perfumadas, lindas, com cores e
aromas deslumbrantes, são o mais
belo presente que Deus nos deu
através da natureza." "(...) Com
elas, limpamos e perfumamos a casa, da cozinha até a sala, passando
por quartos e banheiros."
E não vale o argumento da autora
de que escreve assim bonito, porque é dona de casa, avó e mãe.
Quase toda mulher é. Rosy precisa
acabar com tanto mimo e frescura,
jogar fora a cestinha de violeteira e,
no próximo livro, vir a campo
mostrando a guerreira que deve
ser, botando a boca no mundo,
quebrando a redoma do herbário e
da biblioteca e mostrando o que
sabe para adultos.
Com todas as malcriações de leitora ranzinza, o livro vale pelas receitas fáceis e, principalmente, por
estar introduzindo aos brasileiros
alguma coisa mais do que os sagrados alho, cebola, salsa e cebolinha.
Por obra e graça da autora, já estamos há algum tempo comendo
dill, estragão, borago, chaguinha...
˛
PhD em botânica
Outro livro é "O Saber do Sabor",
de Gil Felippe (edit. Salamandra,
R$ 35, 193 págs.). Pois não é que o
senhor Gil Felippe, PhD em botânica pela Universidade de Edinburgo, professor-titular em Campinas, pesquisador da seção de fisiologia e bioquímica do Instituto
de Botânica de São Paulo, parece
achar que sua fascinante matéria
cairia pesada na cabeça do cozinheiro médio?
Fez um livro com ilustrações
magníficas de Maria Cecília Tomasi e uma brincadeira que, segundo
ele, funcionaria do modo seguinte:
"Assim surgiu a idéia deste livro:
transferir meus conhecimentos
como professor de botânica através de receitas de pratos saborosos.
O livro é, portanto, sobre botânica
básica e se utiliza de receitas culinárias como motivação e forma de
interação com o leitor".
É um truque. Para que o leitor de
cerebelo sensível, aguente o nome
científico do espinafre, Gil Felippe
escreve boas, pequenas, fáceis receitas inglesas e brasileiras com
notas de rodapé "científicas", esclarecendo sobre os ingredientes
principais em letra miúda.
O engraçado é que nos livros ingleses dos quais deve ter sofrido
boa influência a brincadeira é sempre ao contrário. É só ver as excelentes obras de Alan Davidson sobre peixes e frutas, nada acadêmicas, confiáveis ao extremo, com a
receita espremida lá no fim, no rodapé, no lugar dela naquele contexto, com muito orgulho.
Senhor Gil Felippe, queremos
volumes e mais volumes exaustivos sobre o assunto, com as mesmas ilustrações perfeitas. Precisamos conhecer nossos ingredientes,
diferenciar as monocotiledôneas
das dicotiledôneas, queremos os
nomes em quatro línguas (é importante saber que aquilo lá é aquilo aqui). E queremos, ou melhor,
quero, gostaria, por favor, da receita esmigalhada no rodapé.
˛
Bê-á-bá para homens
E mais um! Para principiantes!
"Guia para Sobrevivência do
Homem na Cozinha", de Alessandra Porro (edit. Objetiva, R$ 21,
228 págs.). Sorte dos principiantes.
Sugestões para homens que moram sozinhos e querem cozinhar
bem poucas quantidades.
Começa com o bê-á-bá, explicações sobre baterias de cozinha, ingredientes, sugestões, tudo o que é
preciso para manter o equilíbrio
na hora de fazer uma refeição.
Mas, perceberam? É um guia para sobrevivência do homem, e as
mulheres que se danem. Truque,
também.
Só para o livro ficar mais engraçadinho, é claro, com receitas para
impressionar namoradas, para
mostrar a papai e mamãe que o cozinheiro se cuida, para curar ressacas solitárias.
Bobagens, esses recursos. Fica
mais engraçadinho, mas também
corre o perigo de ficar mais ordinário. Não precisava. É um bom livro de sobrevivência para homens
e mulheres, agradável de se ler, receitas honestas e fáceis.
˛
Aula de francês
E agora "O Prazer da Mesa", de
Mireille Richter (Arte e Ofícios, R$
21, 270 págs.). Terceiro livro da autora em formato de aulas de cozinha francesa com cardápios completos.
Mireille Richter é francesa, radicada no Brasil há mais de 40 anos, e
as aulas são de cozinha francesa
básica. O interessante é que no
meio de tantos livros que aparecem, ora autobiográficos, ora
cheios de alusões a amigos, à infância, companheiros de mesa, Mireille se cala (como é difícil agradar
o leitor implicante...).
Por que não localizou mais as receitas lacônicas dentro de sua vida
de menina francesa, estudando em
colégio militar antes da guerra,
com casa de verão em Auvergne,
onde levantava às 3h para capinar
o campo de batatas?
Filha de oficial da aviação francesa, ela enfrenta a guerra com suas
restrições alimentares e se casa
com um oficial francês que é transferido para o Brasil.
E daí? O livro tem boas receitas,
mas esperamos o quinto livro de
cardápios, com descrições das batatas sujas de terra, do belo oficial e
seu estranhamento ao enfrentar a
farinha e o feijão.
Um volume de memórias com
receitas de França e Rio Grande do
Sul seria enriquecedor para todos
nós. É claro, só se Mireille sabe escrever memórias e quer fazê-lo. Senão, estamos muito bem com os
cardápios nus e crus.
˛
Canibalismo
"O Ritual do Jantar", de Margaret Visser, com tradução de Sonia
Coutinho, (edit. Campus, R$ 59,90,
434 págs.) não é um livro para
principiantes. Até pode ser. Não
tem limite de idade. É compacto,
cheio de informações sobre modos
à mesa, que vão do canibalismo até
utensílios modernos de cozinha
contemporânea.
Não é livro de prender atenção de
cabo a rabo, mas uma boa antologia de tudo que já foi escrito sobre
o assunto. Segundo a autora, trata
de "como comemos, e o porquê
dos modos e maneiras do comer".
Nada acadêmico, tem poucos comentários da própria autora, muito útil para consulta, boa bibliografia e um índice muito pequeno
para assunto tão vasto.
˛
Formato, cheiro e cara
Gostei de "Histórias e Receitas",
de José Hugo Celidonio, (Ediouro,
R$ 39, 304 págs.). Infelizmente, só
consegui o xerox e me faz falta
enorme o objeto-livro com formato, cheiro e cara. Despretensioso,
tem cara, sim, cara do autor, que
conheço de longe, quando (obrigada!) trouxe aqui Alain Chapel, o
grandiosíssimo Chapel. Então, como é a cara? Alegre, sorridente, feliz, naif, bonitos dentes sob bigodes, prontos a morder o mundo,
animadíssimo, empreendedor,
restaurateur, bom garfo.
O livro começa lembrando a infância, o lado caipira de fazenda
paulista e o percurso trilhado por
muitos de nós, durante umas três
décadas. Sai pela vida papando bobó de camarão, pudim de clara, rissoles, sanduichinhos para o chá,
cuscuz, estrogonofe, pavê de chocolate, laranja com coco.
Homem de bom gosto aprecia fazendas sem piscina e com fogão de
lenha. E, em torno desse fogão, vai
se tornando um "foodie", influenciado por viagens, amigos, aulas,
amizades com grandes chefs.
E o livro vai documentando, como um caderno de receitas meio
bagunçado, onde entram
receitas de amigos, origens de
nomes de pratos, tudo pelo que o
autor se interessou algum dia e julga interessar ao leitor.
Pelo jeito continua o mesmo bon
vivant de sempre, e seu livro é como ele, contador e apreciador de
histórias de comida, brasileiro,
caipira e um tanto francês, espelho
de uma época de saltos na culinária
mundial. Bocuse, nouvelle, Chapel, Troisgros, novidades que ele
nos ajudou a descobrir e deglutir
com satisfação.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|