São Paulo, sábado, 19 de setembro de 1998

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Fukuyama, profetas, sacoleiros

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

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"O Senhor Deus é sofisticado, mas não é malicioso", sentenciou Albert Einstein. A frase, inscrita na Universidade de Princenton, parece que caiu no esquecimento. A tendência geral hoje -mais do que nos tempos do físico- é confundir fenômenos naturais com fenômenos sociais. Com a mistura, um olho no noticiário e outro no calendário, montou-se novo frisson intelectual, contagiante como a moda dos suspensórios: o pressagismo, culto sincrético da pressa e do presságio.
Se vivos fossem, o Padre Viera, o Bandarra, os profetas bíblicos e especialmente Daniel (o mais elaborado deles) estariam mudos e estarrecidos diante da saraivada de premonições que domina as praças das aldeias e os templos ideológicos.
A nova safra de cassandras e sibilas foi liderada por Francis Fukuyama, mistura de filósofo, marqueteiro e estrategista, que, em 1989, relançou no balcão das idéias o conceito do fim da História (com H maiúsculo, no sentido de "Weltgeshichte") e previu o início de uma nova era. Primeiro como ensaio na revista conservadora "National Interest", três anos depois em forma de livro (1), Fukuyama misturou os conceitos setecentistas de Hegel com o fim da Guerra Fria e o desmoronamento do império soviético.
Pela primeira vez na crônica do pensamento, o pensamento virou manchete. Um Deus-nos- acuda no cenáculo das idéias, no mundo do espírito. Não se falava ainda em globalização, e Fukuyama lançou a primeira grife intelectual globalizada: virtual e furada. Como as seguintes. Aqui, em Aipotú, pátria das inversões e dos palíndromos, em pleno desnorteamento da Era Collor, Fukuyama era a modernidade.
Quase dez anos depois, os pressentimentos de Fukuyama diante dos avassaladores sucessos do Ocidente, da democracia e do capitalismo liberal, parecem aquelas exortações futuristas de Marinetti nos anos 20: enferrujadas. Fukuyama só acertou ao confirmar o fim do pós-Guerra, o que era óbvio.
No resto, esborrachou-se: o fascismo está ai, os fundamentalismos religiosos idem, o confronto Ocidente-Oriente agrava-se, e o capitalismo continua a exibir falhas estruturais e periódicas, nem sempre reparáveis pela "destruição criativa" de Schumpeter.
A nova crise no mercado de capitais, justaposta ao limiar do novo milênio e à inevitável inclinação apocalíptica, alavancadas por um gênero de jornalismo descontextualizado, está produzindo uma febre de prognósticos que, longe de costurar as grandes tendências facilitando o entendimento, misturam avaliações imediatistas com percepções de longo prazo. Resultado: uma salada em que o futuro é o presente conjugado de forma diferente.
Esse é o pecado crucial de Fukuyama e do novo pelotão de pensadores que desponta, tanto à direita como à esquerda, tomando o mundo virtual das manchetes como reprodução do mundo real (que se movimenta de forma mais caprichosa e sutil). Com um pé na econometria e outro em suas convicções ou interesses, conjeturam sobre a conjuntura como se fosse um dado permanente e estável.
Li a conferência de Allan Greenspan, presidente do Federal Reserve Board americano, na Universidade de Berkley, Califórnia ("O Estado de São Paulo", 13/9/98, pág. B-14), que tanto alento deu às bolsas, quando declarou que os Estados Unidos não podem continuar como um oásis de prosperidade num mundo cada vez mais estressado.
Arrazoado impecável sob o ponto de vista conceitual, porém moralmente gratuito: o oásis de prosperidade é também um bunker de protecionismos que alimenta o bem-estar dos seus cidadãos, mas agrava as aflições de desenvolvidos e emergentes. O autor é funcionário público num regime democrático em que os poderes se equilibram e o eleitorado manifesta-se para defender seus interesses concretos e não as visões de mundo de seus governantes.
A divina sofisticação referida por Einstein pede adivinhadores mais aferrados aos valores. Podem estar envolvidos com o cotidiano, mas não podem abrir mão do seu senso crítico. Os profetas referidos no Velho Testamento não eram dotados de poderes ou sentidos especiais, mas de um aguçado e rigoroso olhar sobre os desmandos e desatinos da época. Sobretudo sobre mentalidades e costumes da época. Com base neles, percebiam as rotas de conflito e a imanência das colisões -nada acontece por acaso.
Crises não são acionadas por deuses maliciosos. São consequência do livre-arbítrio dos comuns mortais, das suas paixões e resignações. O que nos leva à realidade brasileira e à nova rodada do inacabado esforço para conter os desajustes cambiais e orçamentários.
Há duas décadas fala-se que, para evitar o desperdício de divisas, é indispensável controlar o "comprismo" no exterior, o desvario nativo pelos badulaques de Miami. Quando esvaiu- se o milagre de Delfim Netto, e o país caiu na realidade, o governo Geisel tomou a decisão de impor limites ao dreno de dólares provocado pelo turismo externo e pelo consumismo em moeda forte. Criou-se um depósito compulsório para viajantes. Oposições estrilaram, em nome do "inalienável direito de ir e vir". Erraram.
Em outubro passado, para enfrentar o "amok" asiático, previa-se no programa de controle fiscal e cambial um aumento nas taxas de embarque dos aeroportos para o exterior e substanciais limitações nas compras dos "free-shops". Mencionou-se a cifra anual de US$ 5 bilhões para justificar as medidas.
A compulsão sacoleira nivela classes, cultura, estamentos. Ninguém quer abdicar da pasta dental americana ou dos biscoitos da rainha da Inglaterra. Em nome desse direito, bufou o PFL, atacado de populismo tardio e de súbito amor pelo destino dos funcionários da Brasif (que controla empórios de bugigangas dos aeroportos).
Agora, as oposições clamam por cortes nas importações, esquecidas das retaliações que causariam em nossas exportações. Deveriam sair à rua para uma cruzada de conscientização popular contra importados supérfluos. O governo não pode fazê-lo, mas a sociedade pode e deve. É do seu interesse -para garantir postos de trabalho- equilibrar a balança comercial, diminuir pressões cambiais.
Quando viajávamos à ex- URSS, éramos atacados por gente que queria ficar com nossos jeans, meias, esferográficas e outros símbolos do progresso capitalista. Afinal conseguiram: hoje, a Rússia é a maior compradora de carros Rolls- Royce. Mas soldados sem soldo estão colhendo batatas.
Altos e médios executivos cobram planos para conter o desemprego, mas o salário dos executivos no Brasil é um dos maiores do mundo ("Gazeta Mercantil", 26/1/98, pág. C-8). Na "solucionática" brasileira até agora não cabem indagações sobre a contribuição coletiva para minorar a respectiva problemática. Crises vão e voltam sem que haja disposição para compartilhar sacrifícios.
Pregões e taxas despencam ou disparam, mas os índices de participação são nulos. No auge da Era da Informação, a angústia da antecipação ficou maior do que a sede de conhecer. Nessa bolsa de hipóteses, futurologia é só um jogo de apostas. Nem sofisticado nem malicioso: irrelevante.
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1 - "The End of History and the Last Man" ("O Fim da História e o Último Homem", ed. Rocco, 1992)



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