São Paulo, sexta-feira, 19 de outubro de 2001

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"AQUI, ALI, EM QUALQUER LUGAR"

Rita reflete sobre seu passado cantando Beatles

DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1970, na Inglaterra, os Beatles se despediram definitivamente do mundo. Sua obra ficaria para sempre congelada em 13 discos oficiais, definitiva e imutável. Dois anos depois, no Brasil, Rita Lee se despediu dos Mutantes, talvez o grupo que, no mundo todo, mais soube retrabalhar e ampliar a brutal influência dos Beatles pós-LSD, no mundo pós-LSD, no mundo flower power.
O fim dos Mutantes foi adiado, mas ele era provavelmente definitivo, também. Ficaram cinco discos oficiais, mais dois supostos LPs solo de Rita Lee, definitivos e imutáveis, hoje até conhecidos portas do Brasil afora.
Assim é que, quando Rita Lee inventa esse "Aqui, Ali, em Qualquer Lugar", tudo a princípio parece fora de propósito, marketing de dono de gravadora, repetição e redundância, beco sem saída.
Há que se entender, no entanto, o que significa Rita Lee confessar que está publicamente se reconciliando com os Beatles, depois de tê-los negado em prol de hard rock, de glitter rock, de pop goma de mascar, de marchinha carnavalesca feita na fôrma do bolo.
A reconciliação é, obviamente, com os anos perdidos de "vulcão criativo", com os Mutantes, com a juventude. É fato que isso vem se dando em seus discos mais recentes, devagarinho. Mas, em "Aqui, Ali, em Qualquer Lugar", muito por esforço de produção de Roberto de Carvalho, há mais que um punhado de cançõezinhas de amor delicadas moldadas na batida de violão de João Gilberto e, às vezes, no piano de João Donato (que participa de duas faixas, segundo Rita e Roberto sem jamais haver ouvido "Lucy in the Sky with Diamonds").
Há ao menos três faixas tipicamente mutantes. Quase um samba-rock, "A Hard Day's Night" (64) é Jorge Ben filtrado pelos Mutantes, prima-irmã de "A Minha Menina" (68), embora Rita prefira dizer que parece mesmo é Gilberto Gil. Tudo bem, estamos falando de tropicalismo.
Depois, vem o tal baião do bode, "I Want to Hold Your Hand" (63), o grande achado do disco. Apropriação antropofágica, é Rita na cartilha do tropicalismo, de Mutantes cantando "Chão de Estrelas", de Caetano, Gil e Gal barbarizando a influência beatle.
Por fim, a psicodélica "Lucy in the Sky with Diamonds" (67) é o exercício de síntese. Tropicalismo, para Rita Lee 2001, é bossa velha mais a sincronia certinha (ou melhor, retrô) dos Beatles. O piano de João Donato inicia-a em pique de "Águas de Março" (72), mas o refrão entrega Rita à vozinha coquete da menina dos Mutantes, da fã irresponsável de Brigitte Bardot, Jane Birkin, Françoise Hardy e Marianne Faithfull -estamos falando de bossa nova.
Há ainda algum desvio de conduta em "She Loves You" (62), mas de resto tudo é mais linear. Canções bonitinhas vão sendo transformada em "bossa'n'roll", coisa que Rita descobriu há dez anos, no show/disco de mesmo nome. É uma fórmula que a permite adocicar a voz, cantar baixinho, andar de mãos dadas com Nara Leão e Astrud Gilberto.
As versões ensaiam a rebeldia que nunca há de se perder e encaixam pequeninos versos tolos em pronunciamentos políticos de "Tudo por Amor" ("Can't Buy me Love", 64), "Pra Você Eu Digo Sim" ("If I Fell", 64), "Minha Vida" ("In My Life", 65), "Aqui, Ali, em Qualquer Lugar" ("Here, There and Everywhere", 66). Soam desajustados, sacrílegos (diriam os crédulos), de cara dá vontade de brigar com Rita Lee -ou com os Beatles, que espalharam as letras tolas pelo mundo a partir de 62. O iê-iê-iê nunca saiu da moda.
É passadista a revisão de Rita Lee e Roberto de Carvalho? É, totalmente passadista. Mas que não se confunda reflexão sobre o passado com o passado em si, ou com gratuito passadismo.
Deixados de lado os Beatles, é à luz da conciliação de Rita Lee com os Mutantes (ou melhor, com seu passado aqui, ali ou em qualquer lugar) que este pequeno disquinho comercial e os presentes depoimentos de Rita devem ser notados. Se tiver paciência, experimente voltar ao que ela diz à página 1 da Ilustrada, trocando Beatles por Mutantes.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


Aqui, Ali, em Qualquer Lugar
   
Artista: Rita Lee
Lançamento: Abril Music
Quanto: R$ 20 (preço máximo sugerido pela gravadora)



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