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CARLOS HEITOR CONY
O maior carioca de todos os tempos
Mais por falta de assunto
do que por necessidade,
volta e meia surgem reportagens
nos jornais, nas revistas e nas
TVs, em forma de enquete ou de
pesquisa, procurando saber quem
foi o mais isso ou o mais aquilo.
Povo comum e meio esculhambado, o carioca em geral é vítima
dessa preferência ambígua, pois a
imagem que fazem dele pelo Brasil afora não é das mais recomendáveis. Já me fizeram essa pergunta, de várias maneiras, até
mesmo numa cédula com nomes
ilustres, todos candidatíssimos ao
título de maior carioca de todos
os tempos.
Cito alguns: Machado de Assis,
Barão do Rio Branco, Oswaldo
Cruz, Villa-Lobos, Pixinguinha,
Noel Rosa, Lima Barreto, Olavo
Bilac, Tom Jobim, Vinicius de
Moraes, Barão de Mauá, dom Pedro 2º. Em meio a tantos mortos
ilustres, aparecem alguns vivos,
aliás vivíssimos, que deixo de citar para não criar problemas.
A repórter ficou pasma quando,
de próprio punho, eu acrescentei
um nome à lista e, logo em seguida, coloquei o ""x" que indicava o
meu voto.
"É sério?", perguntou ela.
"Seriíssimo", respondi.
E dei meus motivos, que aliás já
dera por aí, em crônicas antigas
no ""Correio da Manhã", aqui
mesmo na Folha e num livrinho
que escrevi sobre a Lagoa, na série
""Cantos do Rio", da editora Relume-Dumará.
O maior carioca de todos os
tempos é aquele homem de braços
abertos em cima da montanha.
Desde criança que ele me espanta
e abraça. Há um pacto entre a
montanha e o sagrado. Foi no alto de uma delas que Moisés arrancou do Senhor os dez mandamentos. Em outra montanha, o
Demônio tentou Jesus, mostrando-lhe toda a Terra, todos os reinos do mundo, oferecendo-os em
troca de uma adoração a seus pés
fendidos de cabra.
Em outra montanha, o mesmo
Jesus pronunciou o seu mais belo
sermão, em um morro orou e
suou sangue, em outro subiu com
a imensa trave e nele ficou, espetado numa cruz.
Maomé está em moda, pois, se
ele não vai à montanha, a montanha vai até ele. E temos a montanha onde Zaratustra encontrou
aquele monge que chorava, rezava e murmurava.
O maior carioca de todos os
tempos é um bloco imenso de cimento, revestido de pequenas escamas de cerâmica especial, como
as naves espaciais. Se não fosse o
maior carioca em conteúdo, ele o
seria em forma. Tem mais de 30
metros de altura e é tido como a
maior estátua do mundo.
Está fazendo 70 anos neste mês
de outubro. Apesar de septuagenário, tem a face moça, o gesto
másculo de quem abraça e protege, dizendo ""Não é possível!" ou
""Parem com isso!".
Olhando-o de frente, qualquer
um compreende o que ele está dizendo: ""Venha de lá esse abraço!". Pelas manhãs, quando eu
abro o computador para a crônica diária, ele me diz ou me lamenta: ""Heitor, você nunca pára
de trabalhar?" (Temos intimidade bastante, ele me chama de Heitor, como na infância todos me
chamavam).
Já acentuei, em crônicas anteriores, que ele é o primeiro a enfrentar nossos temporais e a se espantar com as nossas enchentes, o
primeiro a ouvir os tamborins dos
morros nos ensaios do Carnaval.
Ao contrário do carioca folgazão,
cheio de truques, ele nunca falta
ao trabalho, nunca chega atrasado, está sempre ali, ELE, o homem
de braços abertos.
Se sofrermos uma catástrofe,
uma fúria natural ou provocada,
ele será a primeira vítima, o primeiro a tombar com seus imensos
braços tentando nos proteger.
Às vezes, fica escondido numa
pequenina nuvem que parece
sempre a mesma. Não importa.
Todos sabemos que ele continua
ali. Damos mil voltas em torno
dele, fazemos mil coisas e mil gestos durante o dia, mas ele permanece naquele gesto único, jamais
cruzou aqueles braços, que nunca
se cansam, abertos sobre a Guanabara. À noite, de minha varanda aqui embaixo, gosto de vê-lo
iluminado e refletido nas águas.
Parece então um peixe fosforescente, passeando no ventre escuro
da noite e da Lagoa. Referência
maior da cidade, é também minha referência particular. Onde
quer que eu esteja, olhando-o, sei
que estou em casa. Não o vejo em
forma de cruz, mas de abraço.
Creio que todos o sentem assim.
Consegue ser de todos, porque a
todos pertence, não discrimina,
não escolhe. Aceita-nos tal como
somos, tolera nossas patifarias e
imundícies, é um dos nossos, está
ali para que o olhemos e nos consideremos perdoados. Nem precisamos confessar nossos pecados.
Ele os conhece, pecados de todos e
de cada um. Nada diz porque não
precisa. Ele nos entende.
Não chega a ser um símbolo, como o seu rival mais próximo, o
Pão de Açúcar, que apenas existe,
não fala nada e não se comunica,
por isso se estrumbica. O maior
carioca de todos os tempos é coisa
nossa, um duende, um altar doméstico para o qual nem precisamos de preces para rezar.
Se o colocarmos de cabeça para
baixo, junto com a montanha
verde-negra que lhe serve de pedestal, veremos que ele se transforma numa espécie de âncora às
avessas, jogada contra o céu,
amarrando a cidade no infinito.
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