São Paulo, sexta-feira, 19 de outubro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

O maior carioca de todos os tempos

Mais por falta de assunto do que por necessidade, volta e meia surgem reportagens nos jornais, nas revistas e nas TVs, em forma de enquete ou de pesquisa, procurando saber quem foi o mais isso ou o mais aquilo. Povo comum e meio esculhambado, o carioca em geral é vítima dessa preferência ambígua, pois a imagem que fazem dele pelo Brasil afora não é das mais recomendáveis. Já me fizeram essa pergunta, de várias maneiras, até mesmo numa cédula com nomes ilustres, todos candidatíssimos ao título de maior carioca de todos os tempos.
Cito alguns: Machado de Assis, Barão do Rio Branco, Oswaldo Cruz, Villa-Lobos, Pixinguinha, Noel Rosa, Lima Barreto, Olavo Bilac, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Barão de Mauá, dom Pedro 2º. Em meio a tantos mortos ilustres, aparecem alguns vivos, aliás vivíssimos, que deixo de citar para não criar problemas.
A repórter ficou pasma quando, de próprio punho, eu acrescentei um nome à lista e, logo em seguida, coloquei o ""x" que indicava o meu voto.
"É sério?", perguntou ela.
"Seriíssimo", respondi.
E dei meus motivos, que aliás já dera por aí, em crônicas antigas no ""Correio da Manhã", aqui mesmo na Folha e num livrinho que escrevi sobre a Lagoa, na série ""Cantos do Rio", da editora Relume-Dumará.
O maior carioca de todos os tempos é aquele homem de braços abertos em cima da montanha. Desde criança que ele me espanta e abraça. Há um pacto entre a montanha e o sagrado. Foi no alto de uma delas que Moisés arrancou do Senhor os dez mandamentos. Em outra montanha, o Demônio tentou Jesus, mostrando-lhe toda a Terra, todos os reinos do mundo, oferecendo-os em troca de uma adoração a seus pés fendidos de cabra.
Em outra montanha, o mesmo Jesus pronunciou o seu mais belo sermão, em um morro orou e suou sangue, em outro subiu com a imensa trave e nele ficou, espetado numa cruz.
Maomé está em moda, pois, se ele não vai à montanha, a montanha vai até ele. E temos a montanha onde Zaratustra encontrou aquele monge que chorava, rezava e murmurava.
O maior carioca de todos os tempos é um bloco imenso de cimento, revestido de pequenas escamas de cerâmica especial, como as naves espaciais. Se não fosse o maior carioca em conteúdo, ele o seria em forma. Tem mais de 30 metros de altura e é tido como a maior estátua do mundo.
Está fazendo 70 anos neste mês de outubro. Apesar de septuagenário, tem a face moça, o gesto másculo de quem abraça e protege, dizendo ""Não é possível!" ou ""Parem com isso!".
Olhando-o de frente, qualquer um compreende o que ele está dizendo: ""Venha de lá esse abraço!". Pelas manhãs, quando eu abro o computador para a crônica diária, ele me diz ou me lamenta: ""Heitor, você nunca pára de trabalhar?" (Temos intimidade bastante, ele me chama de Heitor, como na infância todos me chamavam).
Já acentuei, em crônicas anteriores, que ele é o primeiro a enfrentar nossos temporais e a se espantar com as nossas enchentes, o primeiro a ouvir os tamborins dos morros nos ensaios do Carnaval. Ao contrário do carioca folgazão, cheio de truques, ele nunca falta ao trabalho, nunca chega atrasado, está sempre ali, ELE, o homem de braços abertos.
Se sofrermos uma catástrofe, uma fúria natural ou provocada, ele será a primeira vítima, o primeiro a tombar com seus imensos braços tentando nos proteger.
Às vezes, fica escondido numa pequenina nuvem que parece sempre a mesma. Não importa. Todos sabemos que ele continua ali. Damos mil voltas em torno dele, fazemos mil coisas e mil gestos durante o dia, mas ele permanece naquele gesto único, jamais cruzou aqueles braços, que nunca se cansam, abertos sobre a Guanabara. À noite, de minha varanda aqui embaixo, gosto de vê-lo iluminado e refletido nas águas. Parece então um peixe fosforescente, passeando no ventre escuro da noite e da Lagoa. Referência maior da cidade, é também minha referência particular. Onde quer que eu esteja, olhando-o, sei que estou em casa. Não o vejo em forma de cruz, mas de abraço.
Creio que todos o sentem assim. Consegue ser de todos, porque a todos pertence, não discrimina, não escolhe. Aceita-nos tal como somos, tolera nossas patifarias e imundícies, é um dos nossos, está ali para que o olhemos e nos consideremos perdoados. Nem precisamos confessar nossos pecados. Ele os conhece, pecados de todos e de cada um. Nada diz porque não precisa. Ele nos entende.
Não chega a ser um símbolo, como o seu rival mais próximo, o Pão de Açúcar, que apenas existe, não fala nada e não se comunica, por isso se estrumbica. O maior carioca de todos os tempos é coisa nossa, um duende, um altar doméstico para o qual nem precisamos de preces para rezar.
Se o colocarmos de cabeça para baixo, junto com a montanha verde-negra que lhe serve de pedestal, veremos que ele se transforma numa espécie de âncora às avessas, jogada contra o céu, amarrando a cidade no infinito.



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