São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 2011

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OPINIÃO

Prolongar o sonho de Leon Cakoff é uma necessidade

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Estou me sentindo órfã." Foi a primeira mensagem a chegar quando Leon se foi. Logo vieram outras: muitos se diziam órfãos. Não é para menos. Com a Mostra, Leon não formou apenas gerações de cinéfilos. Ele abriu, para um público amplo, uma janela para o mundo. Por isso o legítimo sentimento de filiação. Por isso a sensação de perda irreparável: partiu quem nos revelou que o mundo era bem maior do que imaginávamos.
De Kiarostami a Wim Wenders, de Angelopoulos a Jia Zhang-ke, cineastas de latitudes diferentes vieram pensar o cinema em São Paulo. A Mostra se tornou um ponto de encontro para realizadores que, como Manoel de Oliveira ou Amos Gitai, faziam questão de voltar à cidade. Por isso, também, a desolação que tomou conta dos inúmeros amigos que Leon tinha mundo afora.
Leon jamais poderia ter imaginado tal comoção. Viveu lutando para concretizar o sonho da Mostra. Até os últimos dias, discutia a seleção do filme de abertura com Renata de Almeida, sua mulher e companheira de todas as horas.
Ao lado dela, de Daniela Thomas e de Felipe Tassara, tive o privilégio de uma tarde inesquecível com Leon, quando a doença deu uma última trégua, há pouco mais de duas semanas.
Leon estava consciente, o raciocínio veloz e agudo. Perguntou da montagem "que não acabava nunca" do filme que estou terminando e passou para seu tema preferido: a Mostra. Falou da possibilidade de ter "Habemus Papam", o mais novo longa de Nanni Moretti, na abertura.
Fazia sentido. "Habemus Papam" é a história de um cardeal (o genial Michel Piccoli), que se recusa a ser sagrado papa. Num mundo em que muitos querem o poder a qualquer preço, o simples ato de recusá-lo já é de uma extrema pertinência política. Dizer "não" foi uma constante na vida de Leon. Pela Mostra, disse não à repressão militar, a diversas formas de censura, ao descaso crônico com a cultura no Brasil.
Finalmente, a escolha recaiu sobre "O Garoto da Bicicleta", o ótimo filme dos irmãos Dardenne, que também têm relação direta com Leon.
Afinal, o cinema dos Dardenne é feito de uma busca pelo essencial. Leon, como programador da Mostra, propôs uma seleção de filmes a partir do olhar rigoroso que tinha. Com a multiplicação das imagens e a desordem crescente com que são apresentadas, esse trabalho se fez ainda mais necessário.
Era antes de mais nada um apaixonado. De sua paixão desenfreada pelo cinema nos beneficiamos todos: pelas críticas ou livros que escreveu, mas, sobretudo, pela Mostra.
A Mostra fez de São Paulo uma cidade melhor. É por isso que tantos esperam que ela possa sobreviver com independência, dirigida pelo olhar igualmente apaixonado de Renata, codiretora do evento há mais de 15 anos. Se o sonho de Leon virou realidade, o prolongamento desse sonho é uma necessidade.
Volto ao nosso último encontro. Leon falou do desejo de trazer uma retrospectiva de Ettore Scola, com a presença do diretor. A verba não deu, mas nem isso o abateu.
A noite se avizinhou, e nos abraçamos na despedida. A dois dias da abertura da Mostra, o título de um filme do velho mestre italiano não me sai da cabeça. Cometo a heresia de mudá-lo um pouco, para falar de Leon: "Nós que o amávamos tanto".

WALTER SALLES, 55, é cineasta.


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