São Paulo, Sexta-feira, 19 de Novembro de 1999
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CRÍTICA

Deuses e homens encontram-se em "Santo Forte"

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Eduardo Coutinho é como um psicanalista, cuja virtude principal é escutar. Esse é o seu papel também em "Santo Forte": suscitar a expressão de seus personagens, deixar que, à força de falar, revelem não só a si mesmos como o mundo em que vivem.
É possível perguntar, hoje, qual a função do documentário cinematográfico, numa época em que a televisão teoricamente ocupou esse espaço, seja com as reportagens, seja com talk shows.
Mas a verdade é que esses programas dão conta apenas de uma parte da realidade.
Os talk shows permitem que se expresse habitualmente a burguesia ou a classe média. Isso que chamamos de povo só é convocado a comparecer como exotismo ou aberração, vítima ou culpado.
Em "Santo Forte" as pessoas são, simplesmente, quem são. Parece fácil. Só parece. A principal virtude de Eduardo Coutinho é apagar a fronteira entre o documentário e a ficção. Quem nós somos? Esta parece a pergunta-chave de seu trabalho.
Talvez cada um de nós seja apenas a ficção de outras pessoas, daqueles que nos vêem e escutam. Nesse sentido, a fronteira entre o ficcional e o documental se dissipa com relativa facilidade.
E mais ainda se o assunto é religião e religiosidade. Nesse terreno, Deus, nossa senhora, oxossi, pomba gira são entidades de que se fala como se fosse do sujeito da venda. Cada personagem contribui para conformar um mundo fantástico e prosaico.
Estamos num morro do Rio de Janeiro, mas parece que estamos numa tragédia grega, em que homens e deuses podem, perfeitamente, dialogar.
Coutinho apanha uma variante no mínimo curiosa dessa religiosidade brasileira (ou carioca, em todo caso): com a entrada das igrejas evangélicas, hoje o nosso velho sincretismo já não se limita a associar catolicismo romano e cultos de origem africana. A tradicional infidelidade a uma crença parece se expandir.
Um dia, o sujeito pode muito bem ser católico, na outra semana adepto da Universal e, por fim, da umbanda ou do espiritismo.
As pessoas não enxergam nessas religiões as mesmas contradições que tanto inquietam padres, pastores ou pais-de-santo: transitam conforme sua conveniência do momento, porque os deuses vivem no morro, a seu lado, de maneira que vida cotidiana e vida espiritual deixam-se permear uma pela outra quase em tempo integral, da mesma forma que a realidade (documental) só se afirma como tal na medida em que nos permite ver a ficção fabulosa que a compõe.
Disse no início que a TV era, essencialmente, teatro das crenças e vaidades da burguesia e da classe média, o lugar pelo qual desfilam as crenças de economistas, socialites, artistas -crenças em geral não muito mais fundamentadas que as em oxossi, são Jorge etc.
A TV se eterniza pela mudança permanente, pela adesão a modas. Mesmo se fala em religião, o faz de maneira mundana (mais do que laica).
A TV mente porque não resta outra alternativa. O assunto de hoje já não existirá amanhã. A TV é inimiga mortal da memória tanto quanto é amiga da publicidade.
No mundo audiovisual, o cinema só tem a perder quando tenta imitá-la. Seu espaço é o da verdade, isto é, da permanência. Não é arte, não é ciência -é uma revelação, como disse Godard. É onde existe (ainda) a hipótese de as coisas se mostrarem tais quais.
É bastante possível que hoje pouca gente vá ao cinema para ver "Santo Forte". Não importa. Daqui a cem anos, quando alguém quiser saber como pensavam e viviam as pessoas -ou certas pessoas- no fim do século 20, esse filme ainda estará vivo.
Este é seu tempo. Esta é sua razão de existir.


Avaliação:     


Filme: Santo Forte
Diretor: Eduardo Coutinho
Produção: Brasil, 1999
Quando: a partir de hoje, no Unibanco 4




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