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CRÍTICA
Deuses e homens encontram-se em "Santo Forte"
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Eduardo Coutinho é como um
psicanalista, cuja virtude principal é escutar. Esse é o seu papel
também em "Santo Forte": suscitar a expressão de seus personagens, deixar que, à força de falar,
revelem não só a si mesmos como
o mundo em que vivem.
É possível perguntar, hoje, qual
a função do documentário cinematográfico, numa época em que
a televisão teoricamente ocupou
esse espaço, seja com as reportagens, seja com talk shows.
Mas a verdade é que esses programas dão conta apenas de uma
parte da realidade.
Os talk shows permitem que se
expresse habitualmente a burguesia ou a classe média. Isso que
chamamos de povo só é convocado a comparecer como exotismo
ou aberração, vítima ou culpado.
Em "Santo Forte" as pessoas
são, simplesmente, quem são. Parece fácil. Só parece. A principal
virtude de Eduardo Coutinho é
apagar a fronteira entre o documentário e a ficção. Quem nós somos? Esta parece a pergunta-chave de seu trabalho.
Talvez cada um de nós seja apenas a ficção de outras pessoas, daqueles que nos vêem e escutam.
Nesse sentido, a fronteira entre o
ficcional e o documental se dissipa com relativa facilidade.
E mais ainda se o assunto é religião e religiosidade. Nesse terreno, Deus, nossa senhora, oxossi,
pomba gira são entidades de que
se fala como se fosse do sujeito da
venda. Cada personagem contribui para conformar um mundo
fantástico e prosaico.
Estamos num morro do Rio de
Janeiro, mas parece que estamos
numa tragédia grega, em que homens e deuses podem, perfeitamente, dialogar.
Coutinho apanha uma variante
no mínimo curiosa dessa religiosidade brasileira (ou carioca, em
todo caso): com a entrada das
igrejas evangélicas, hoje o nosso
velho sincretismo já não se limita
a associar catolicismo romano e
cultos de origem africana. A tradicional infidelidade a uma crença
parece se expandir.
Um dia, o sujeito pode muito
bem ser católico, na outra semana
adepto da Universal e, por fim, da
umbanda ou do espiritismo.
As pessoas não enxergam nessas religiões as mesmas contradições que tanto inquietam padres,
pastores ou pais-de-santo: transitam conforme sua conveniência
do momento, porque os deuses
vivem no morro, a seu lado, de
maneira que vida cotidiana e vida
espiritual deixam-se permear
uma pela outra quase em tempo
integral, da mesma forma que a
realidade (documental) só se afirma como tal na medida em que
nos permite ver a ficção fabulosa
que a compõe.
Disse no início que a TV era, essencialmente, teatro das crenças e
vaidades da burguesia e da classe
média, o lugar pelo qual desfilam
as crenças de economistas, socialites, artistas -crenças em geral
não muito mais fundamentadas
que as em oxossi, são Jorge etc.
A TV se eterniza pela mudança
permanente, pela adesão a modas. Mesmo se fala em religião, o
faz de maneira mundana (mais
do que laica).
A TV mente porque não resta
outra alternativa. O assunto de
hoje já não existirá amanhã. A TV
é inimiga mortal da memória tanto quanto é amiga da publicidade.
No mundo audiovisual, o cinema só tem a perder quando tenta
imitá-la. Seu espaço é o da verdade, isto é, da permanência. Não é
arte, não é ciência -é uma revelação, como disse Godard. É onde
existe (ainda) a hipótese de as coisas se mostrarem tais quais.
É bastante possível que hoje
pouca gente vá ao cinema para
ver "Santo Forte". Não importa.
Daqui a cem anos, quando alguém quiser saber como pensavam e viviam as pessoas -ou certas pessoas- no fim do século 20,
esse filme ainda estará vivo.
Este é seu tempo. Esta é sua razão de existir.
Avaliação:
Filme: Santo Forte
Diretor: Eduardo Coutinho
Produção: Brasil, 1999
Quando: a partir de hoje, no Unibanco 4
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