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FERNANDO BONASSI
Roleta brasileira
Senhoras e senhores... de
um lado, 67 kg, 28 anos, três
filhos... o sargento Darci dos S.,
atirador de elite da Polícia Militar. Do outro, 51 kg, 29 anos, dois
filhos reconhecidos, Valdir de S.,
assaltante... no momento, também sequestrador... mantendo a
senhora Ísis B. M., 82 kg, 62 anos,
mãe de três e avó de quatro, sob
mira de arma no interior de uma
agência bancária...
Quando Darci era pequeno, o
pai lhe disse, apontando a cidade
que dava as costas ao cômodo de
bloco onde moravam:
- Daqui pra lá você pode ser
duas coisas: polícia ou ladrão.
Darci passou um tempo pensando nisso. Depois esqueceu.
O pai de Valdir disse o mesmo
pra ele. Era normal. Valdir também já tinha ouvido de outras
pessoas. Valdir escolheu mais cedo o que poderia ser.
Dona Ísis estudou até o ginásio
em Barra Bonita. Depois foi fazer
o curso normal em Marília, que
aquela cidade tinha ficado pequena pra isso... e pra outras coisas mais.
Darci estudou pra torneiro mecânico no Senai de São Caetano.
Depois foi vendo os tornos desaparecerem das fábricas, as fábricas desaparecerem dos terrenos...
e percebeu que era melhor ter
uma outra idéia do que fazer nessa vida.
Valdir nunca gostou de pedir. A
mãe é que o obrigava. Preferia...
"pegar". Começou e não parou
mais. Pegava e corria. Era desajeitado com as mãos, mas rápido
com os pés. E assim se defendia.
Dona Ísis queria dar aula, mas
encontrou aquele "alemão forte".
Foi num baile em Jaú. Ele falava
tudo arrastado, era peludo no
peito e tinha olho verde... fazer o
quê?
Darci e Valdir já tinham casado
por amor, mas nenhum dos dois
era santo.
Dona Ísis, se pudesse, seria menos santa.
Darci terminou o segundo grau
depois que entrou pra PM. Frequentava pouco. Repetiu de ano.
Tirou diploma e ganhou um aumento. Coisa de R$ 70. Pra dizer a
verdade, ele não tinha certeza se
era por causa do diploma, só que
era uma bosta de aumento.
Valdir não terminou o primeiro
grau. Naquela época não tinha
esse mole pra passar de ano e Valdir não passou na maioria das vezes; até que se encheu, virou as
costas pra escola e foi embora.
Dona Ísis, "fazer o quê?", casou
grávida (mas é até feio eu estar
dizendo isso aqui, pois pouca gente sabe).
Darci fez curso de tiro no Barro
Branco. Descobriu que tinha habilidade com o fuzil e se especializou em acertar a testa daqueles
bonecos de papelão.
Valdir aprendeu a atirar em
melancia e garrafa, nos fundos do
depósito do seu Ademar, que
comprava algumas daquelas coisas que ele "pegava" por aí.
O marido de D. Ísis se deu bem
na terra. Tirou dela sítio, carro, o
sustento e a faculdade dos filhos
que quiseram estudar, além da
casa da Vila Mariana.
Com hora extra, auxílio insalubridade e mais uns troços Darci
ganhava quase R$ 2.000 por mês.
Ganhava muito mais, segundo o
hollerith, mas aquele era o dinheiro que chegava à sua mão.
Disso que chegava à mão de Darci, quase R$ 1.600 desapareciam
no mesmo dia. Não lhe perguntem como.
Tinha mês que Valdir torrava
R$ 10.000. Tinha mês que torrava
R$ 20.000. Tinha mês que Valdir
pedia esmola.
Dona Ísis nunca passou fome,
mas aprendeu a trazer o orçamento da casa ali, ó.
Darci tentou financiamento pra
um apartamento de dois quartos
na Vila Alpina, mas tem pouco
tempo de corporação pra isso e
falta uns documentos.
Valdir já dormiu em suíte cinco
estrelas e ao relento. Dormir ele
aprendeu que é cair duro e esquecer, de um jeito ou de outro.
Dona Ísis não troca sua cama
por nada, ainda que os netos a
deixem dormir pouco nos últimos
tempos.
Darci já poderia ter feito curso
de sniper na Flórida ou em Israel,
mas não tem a menor noção de
inglês, e primeiro vão aqueles que
falam meia dúzia de palavras...
ou puxam o saco.
Valdir inventou uma língua
própria pra acompanhar Michael
Jackson. Parece com o original,
mas nem ele mesmo entende.
Dona Ísis gostaria de falar italiano, praquelas coisas napolitanas que ouvia a mãe cantar no
tanque, em Barra Bonita.
Aliás, estava tocando Michael
Jackson no radinho do quartel
quando soou o alarme. Valdir pulou da cama, se espetou nas botas
e saiu abraçado com o fuzil, procurando por viatura.
Quando soou o alarme, Valdir
se atracou com a primeira velha
que encontrou e, arma na cabeça
dela, ficou encostado na parede
dos fundos.
Dona Ísis não se entendia com o
caixa eletrônico. Por isso, embora
não precisasse, estava na fila. Não
na da terceira idade, que ainda
nem era idosa pra isso. Então alguém a puxou pelo pescoço e a está usando de escudo.
Tem pelo menos uma dúzia de
homens fardados, escondidos por
trás de três carros de polícia, além
dos vidros. Tem um atirador de
elite sobre a portaria de um prédio de apartamentos de dois dormitórios do outro lado da rua. Está chegando a hora do almoço...
todo mundo tem fome... um sol
desgraçado... cozinhando no cimento... Darci pousa o indicador
no gatilho do seu fuzil... Valdir
puxa o cão do seu 38... o nariz de
Dona Ísis está pinicando... ela vai
espirrar... senhoras e senhores...
façam suas apostas.
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