São Paulo, terça-feira, 19 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Roleta brasileira

Senhoras e senhores... de um lado, 67 kg, 28 anos, três filhos... o sargento Darci dos S., atirador de elite da Polícia Militar. Do outro, 51 kg, 29 anos, dois filhos reconhecidos, Valdir de S., assaltante... no momento, também sequestrador... mantendo a senhora Ísis B. M., 82 kg, 62 anos, mãe de três e avó de quatro, sob mira de arma no interior de uma agência bancária...
Quando Darci era pequeno, o pai lhe disse, apontando a cidade que dava as costas ao cômodo de bloco onde moravam:
- Daqui pra lá você pode ser duas coisas: polícia ou ladrão.
Darci passou um tempo pensando nisso. Depois esqueceu.
O pai de Valdir disse o mesmo pra ele. Era normal. Valdir também já tinha ouvido de outras pessoas. Valdir escolheu mais cedo o que poderia ser.
Dona Ísis estudou até o ginásio em Barra Bonita. Depois foi fazer o curso normal em Marília, que aquela cidade tinha ficado pequena pra isso... e pra outras coisas mais.
Darci estudou pra torneiro mecânico no Senai de São Caetano. Depois foi vendo os tornos desaparecerem das fábricas, as fábricas desaparecerem dos terrenos... e percebeu que era melhor ter uma outra idéia do que fazer nessa vida.
Valdir nunca gostou de pedir. A mãe é que o obrigava. Preferia... "pegar". Começou e não parou mais. Pegava e corria. Era desajeitado com as mãos, mas rápido com os pés. E assim se defendia.
Dona Ísis queria dar aula, mas encontrou aquele "alemão forte". Foi num baile em Jaú. Ele falava tudo arrastado, era peludo no peito e tinha olho verde... fazer o quê?
Darci e Valdir já tinham casado por amor, mas nenhum dos dois era santo.
Dona Ísis, se pudesse, seria menos santa.
Darci terminou o segundo grau depois que entrou pra PM. Frequentava pouco. Repetiu de ano. Tirou diploma e ganhou um aumento. Coisa de R$ 70. Pra dizer a verdade, ele não tinha certeza se era por causa do diploma, só que era uma bosta de aumento.
Valdir não terminou o primeiro grau. Naquela época não tinha esse mole pra passar de ano e Valdir não passou na maioria das vezes; até que se encheu, virou as costas pra escola e foi embora.
Dona Ísis, "fazer o quê?", casou grávida (mas é até feio eu estar dizendo isso aqui, pois pouca gente sabe).
Darci fez curso de tiro no Barro Branco. Descobriu que tinha habilidade com o fuzil e se especializou em acertar a testa daqueles bonecos de papelão.
Valdir aprendeu a atirar em melancia e garrafa, nos fundos do depósito do seu Ademar, que comprava algumas daquelas coisas que ele "pegava" por aí.
O marido de D. Ísis se deu bem na terra. Tirou dela sítio, carro, o sustento e a faculdade dos filhos que quiseram estudar, além da casa da Vila Mariana.
Com hora extra, auxílio insalubridade e mais uns troços Darci ganhava quase R$ 2.000 por mês. Ganhava muito mais, segundo o hollerith, mas aquele era o dinheiro que chegava à sua mão. Disso que chegava à mão de Darci, quase R$ 1.600 desapareciam no mesmo dia. Não lhe perguntem como.
Tinha mês que Valdir torrava R$ 10.000. Tinha mês que torrava R$ 20.000. Tinha mês que Valdir pedia esmola.
Dona Ísis nunca passou fome, mas aprendeu a trazer o orçamento da casa ali, ó.
Darci tentou financiamento pra um apartamento de dois quartos na Vila Alpina, mas tem pouco tempo de corporação pra isso e falta uns documentos.
Valdir já dormiu em suíte cinco estrelas e ao relento. Dormir ele aprendeu que é cair duro e esquecer, de um jeito ou de outro.
Dona Ísis não troca sua cama por nada, ainda que os netos a deixem dormir pouco nos últimos tempos.
Darci já poderia ter feito curso de sniper na Flórida ou em Israel, mas não tem a menor noção de inglês, e primeiro vão aqueles que falam meia dúzia de palavras... ou puxam o saco.
Valdir inventou uma língua própria pra acompanhar Michael Jackson. Parece com o original, mas nem ele mesmo entende.
Dona Ísis gostaria de falar italiano, praquelas coisas napolitanas que ouvia a mãe cantar no tanque, em Barra Bonita.
Aliás, estava tocando Michael Jackson no radinho do quartel quando soou o alarme. Valdir pulou da cama, se espetou nas botas e saiu abraçado com o fuzil, procurando por viatura.
Quando soou o alarme, Valdir se atracou com a primeira velha que encontrou e, arma na cabeça dela, ficou encostado na parede dos fundos.
Dona Ísis não se entendia com o caixa eletrônico. Por isso, embora não precisasse, estava na fila. Não na da terceira idade, que ainda nem era idosa pra isso. Então alguém a puxou pelo pescoço e a está usando de escudo.
Tem pelo menos uma dúzia de homens fardados, escondidos por trás de três carros de polícia, além dos vidros. Tem um atirador de elite sobre a portaria de um prédio de apartamentos de dois dormitórios do outro lado da rua. Está chegando a hora do almoço... todo mundo tem fome... um sol desgraçado... cozinhando no cimento... Darci pousa o indicador no gatilho do seu fuzil... Valdir puxa o cão do seu 38... o nariz de Dona Ísis está pinicando... ela vai espirrar... senhoras e senhores... façam suas apostas.


Texto Anterior: Crítica: Livro discute, pela 1ª vez, "TV de autor"
Próximo Texto: 35º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro: Contrariamente iguais
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.