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São Paulo, quarta-feira, 19 de novembro de 2003

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MARCELO COELHO

Um debate irreal

Diante do horrível, fazemos tudo para desviar o nosso olhar. Aconteceu isso depois do assassinato dos namorados Felipe Caffé e Liana Friedenbach. Segundo a polícia, a quadrilha responsável por esse crime tem como líder um rapaz de 16 anos. Todas as atenções logo se voltaram para um debate relativamente secundário -o da maioridade penal-, uma vez que o fato em si parece suspender nossa capacidade de reação.
O abalo experimentado pela opinião pública não se deve simplesmente ao fato de que as vítimas eram de classe média ou média alta. Eis um clichê bastante impiedoso, aliás: "Na periferia, jovens são assassinados aos montes e ninguém liga...". Correto. Mas, se a tragédia acontece com pessoas mais próximas de nós, é natural que a comoção seja maior.
Há outra coisa em jogo. Os dois jovens não foram mortos na saída do colégio ou num assalto comum. Estavam vivendo uma aventura romântica, uma experiência quase mitológica, ou melhor, arquetípica: o namoro escondido dos pais, a fuga para uma pequena cabana na floresta, a intrepidez com que ignoraram as advertências dos mais velhos... tudo estava planejado para ser um conto de fadas.
A poucos quilômetros de São Paulo, existiria uma espécie de bosque encantado, ao alcance dos adolescentes que conhecessem o caminho; mas o assassinato de Liana e Felipe veio destruir essa construção idílica, que retrospectivamente compartilhávamos com eles enquanto líamos a notícia nos jornais. Nenhum esconderijo na mata: aqueles que quiserem sair de uma cidade dura, feia e inabitável encontrarão apenas... a periferia, com sua realidade de pobreza e violência e seus menores infratores.
A idéia de reduzir para 16 anos a maioridade penal talvez tenha, assim, um significado oculto -o de que passou o tempo dos contos de fadas, das histórias românticas, e que cabe agora encarar a dura realidade.
Mas é o próprio debate que me parece, no fundo, bastante irreal. Vi o ministro da Justiça na TV, pronunciando-se terminantemente contra a mudança da lei. Jogar um garoto de 16 anos na prisão seria selar o seu destino para sempre: sabemos que os estabelecimentos penais são verdadeiras escolas de crime...
Que o próprio ministro da Justiça aponte a falência do sistema carcerário não tem nada de espantoso. Márcio Thomaz Bastos, advogado esclarecido e liberal, sempre denunciou esses híbridos de campos de concentração e quartéis-generais do crime organizado que a estupidez do poder público espalhou pelo território brasileiro.
O espantoso é achar que, deixando o garoto na Febem, seu destino vá ser diferente. Metido numa instituição em estado tão falimentar quanto qualquer presídio, o "menor infrator" há de ter mínimas chances de recuperação. Trata-se, na verdade, de outro problema: quanto tempo se consegue deixar o assassino entre as grades -pouco ou nada sendo feito (todos sabemos disso) para "reabilitá-lo para o convívio social".
Quanto eufemismo! A solução proposta pelo governador Alckmin vai nessa direção. Deixa-se o garoto na Febem, ou que nome tenha, Carandiru, Gulag, Auschwitz, Birkenau. Mas por mais tempo! O importante é que não volte às ruas quando fizer 18 anos.
Um aspecto curioso nesse debate é que algumas autoridades parecem mais preocupadas com a incapacidade do sistema prisional do que com a segurança pública propriamente dita. "Menores de 18 nas cadeias? Mas se aqui já está tudo lotado!" Nos últimos anos, o problema da segurança está se resumindo à necessidade que o Estado tem de proteger a si mesmo (com as delegacias e os policiais sendo atacados por bandidos), mais do que a de proteger os cidadãos. Estes, quando podem, protegem-se por conta própria, em condomínios fechados e com vigias e sistemas de segurança independentes.
Quando vejo as operações da polícia em favelas do Rio, o paralelo que se impõe é com as ações de Israel sobre os acampamentos palestinos. Não faltará muito para que joguemos mísseis em alguns barracos onde supostamente estariam escondidos os traficantes e mandatários de atentados.
Se crianças e velhos morrem na operação, tanto melhor. Alguém já disse que, no Brasil, a classe média e a classe alta se acostumaram a pensar nos pobres como lixo. No mínimo, um obstáculo, um incômodo, uma atrapalhação -estaríamos em plena Bélgica se eliminássemos a Índia.
O raciocínio foi mais ou menos explicitamente ventilado durante os anos FHC. Nos anos Lula, o tema do lixo volta à baila, em registro doméstico, decorativo e intimista. Refiro-me aos cestos de lixo "em madeira freijó" -como se diz- ao custo de R$ 476 a peça, que estão sendo comprados para os gabinetes do Planalto.
Muitos se escandalizaram com o preço. Mas, para saber se é caro mesmo, teríamos de conhecer as dimensões de cada cesto. Talvez sejam enormes: há muita coisa -planos, programas, discursos, idéias, compromissos, papelada inútil- que este governo trata de jogar no lixo. O cesto vai ficar tão abarrotado quanto uma cela da Febem.


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