São Paulo, sábado, 19 de novembro de 2005

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ARTIGO

Livro é uma lição de vertigem e pudor

CARLOS DIEGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Existem várias maneiras de aprender as coisas. A mais convencional delas é a do discurso pedagógico, a fala organizada que pretende nos ensinar o que precisamos saber. Mas aquela que nos marca de modo mais profundo e duradouro é sempre a da observação do gesto do outro, o exemplo do qual somos testemunhas e cujo significado reconhecemos visceralmente.
É assim que nos sentimos diante de "Quase Tudo", o livro de memórias de Danuza Leão, que, sem ter a pretensão de nos ensinar nada, nos põe diante de várias linhas de narração, que vão desde as revelações íntimas de uma mulher sobre os modos de viver o cotidiano (e sobretudo amar) no seu tempo de vida até a história mundana e política do Brasil da segunda metade do século passado.
É muito raro encontrar, num mesmo livro, confissões privadas tão contundentes e revelações públicas tão preciosas.
Danuza Leão faz isso sem recorrer a métodos de rigor literário ou científico, através do simples desfiar de suas lembranças, nem sempre cronologicamente ordenadas, mas constantemente arrebatadoras de sinceridade e clareza. Através de seus conturbados romances com o ator francês Daniel Gélin ou com o jornalista brasileiro Antônio Maria, ficamos conhecendo as personalidades e os hábitos privados ou públicos de um determinado tempo, como se estivéssemos num romance de Stendhal (embora, segundo ela escreve, Danuza prefira Balzac e Eça de Queiroz) ou num desses compêndios científicos de história dos costumes.


É raro encontrar confissões privadas tão contundentes e revelações públicas tão preciosas

A partir dos anos 1950, uma sucessão de mulheres independentes e corajosas começaram a inventar publicamente um outro jeito de ser mulher no Brasil, rompendo as tradições e os preconceitos ibéricos e patriarcais de nossa sociedade. É claro que já havia, em nossa história, os exemplos solitários de mulheres como Pagu, mas agora essa revolução se dava como uma clara e explícita missão. Danuza Leão foi, digamos assim, a pioneira involuntária desse movimento que teve seu apogeu na consagração pública de gente como sua irmã, Nara, ou como Leila Diniz.
É com muito pudor que Danuza narra a evolução dessa história em seu livro que, embora escrito na primeira pessoa, como qualquer autobiografia deve ser, parece tratar de um personagem que ela mesma descobre à medida que nos revela a certa distância.
Dos deliciosos costumes provincianos de sua família, ainda na capital ou no interior do Espírito Santo, durante sua infância e adolescência, à vida cosmopolita e vertiginosa em Paris ou Nova York, a partir de sua juventude de sucesso precoce, Danuza nos narra suas instantâneas e compactas experiências, em quantidade e velocidade estonteantes. Dificilmente um ser humano normal, num só tempo de vida, seria capaz de viver tantas e tão variadas experiências com a mesma intensidade das suas.
Com a mesma e discreta precisão, o livro nos fala de uma vida de menina à beira de rios do interior, às voltas com comidas típicas que o pai curtia e tragédias amorosas como a de tia Nóbila, que fugiu com um tenente que perseguia Lampião e foi supostamente morto por pai e irmão ofendidos.
Como nos fala da elite intelectual do Rio de Janeiro dos anos 1950, que conheceu ao chegar à então capital do país, para onde se mudara com o pai, a mãe e a irmã mais nova. Ali, ela passa a conviver intimamente com gente como o poeta Vinicius de Moraes, o banqueiro Walter Moreira Salles, o pintor Di Cavalcanti, o arquiteto Oscar Niemeyer, o jornalista Rubem Braga, o escritor Fernando Sabino, uma turma de dar gosto.

Ficamos conhecendo as personalidades e os hábitos privados ou públicos de um determinado tempo, como (...) num romance de Stendhal

A vertigem existencial de Danuza prossegue em seu ritmo frenético quando, aos 17 anos, ela viaja para Paris e se torna, na casa de moda do famoso Jacques Fath, a primeira modelo brasileira de carreira internacional. Ela passa a fazer parte de um mundo freqüentado por milionários, estrelas do cinema, "performers" internacionais, vagabundos profissionais, gente famosa do mundo inteiro, no delírio de drogas, dinheiro e poder que a "dolce vita" daqueles anos cultivou.
Mas a história dessa mulher especial, que foi amiga de Miles Davis e Bobby Short, de Diana Vreeland e Richard Avedon, de James Baldwin e Françoise Sagan, do Aga Khan e de Heini Thyssen, não se encerraria na falta de sentido e na monotonia do jet set.
Casada com o jornalista Samuel Wainer aos 19 anos (ele tinha então 41), pai de seus três filhos, esse foi o mais importante "turning point" de sua vida, o ponto de equilíbrio em que ela ganhou o estilo de seu futuro. Mesmo depois de separada dele, conforme a própria Danuza relata no livro, Samuel Wainer estaria de algum modo presente em sua vida, até sua morte prematura no início dos anos 1980.
Samuel Wainer, um homem do mundo, moderno, inteligente e desprendido, era o dono da "Última Hora", o único jornal que, naquele momento crucial, defendia o presidente Getúlio Vargas, então ameaçado de deposição por golpe de Estado. Danuza se viu no centro do poder político do país, envolvida nas lutas e intrigas que culminaram com o suicídio de Vargas e prosseguiram, se sucedendo a isso, até o golpe de 1964 e a resistência a ele.
Além de se relacionar com os políticos mais importantes do país, ela se aproximou também de seus congêneres mundiais, como Nikita Kruschev e Mao Tsé Tung, que ela conheceu em Pequim, na década de 60, durante as festas do décimo aniversário da Revolução Chinesa.
Essa incrível história de uma heroína stendhaliana vai aos poucos se concentrando na reflexão ativa de uma mulher que tenta entender o mundo a partir de suas experiências pessoais, tomando os sentimentos e suas conseqüências como padrões de comportamento da humanidade. Fruto de seu instinto, mas também de sua erudição, Danuza mantém um espírito crítico sobre o que vê diante de si, com uma espécie de iluminismo existencial, no qual a razão tenta entender com nobreza os sentimentos. E vice-versa.
Depois de um período de sua vida, que ela mesma chama de sombrio, no qual perde, de maneira sempre inesperada e às vezes trágica, o ex-marido, o pai, a irmã, um filho e a mãe, Danuza se recolhe, por escolha própria, a uma espécie de solidão luminosa, em que faz de seus textos uma continuação de sua vida, uma reflexão sem lições expressas, mas cheias de coragem e até de um certo e delicado estoicismo.
Poucas pessoas no mundo poderiam nos contar a eletrizante história autobiográfica que se encontra em "Quase Tudo". E nenhuma faria isso com o mesmo pudor inteligente e a mesma delicadeza moral de Danuza Leão.

Carlos Diegues é cineasta e conclui seu 17º longa-metragem, "O Maior Amor do Mundo". Foi casado com a cantora Nara Leão, irmã de Danuza.

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