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Requisitos da polêmica civilizada
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Por temperamento, sou avesso a polêmicas. Prezo o diálogo,
o embate de idéias, a crítica
franca. O problema é quando o
espírito do confronto toma
conta. Não raro, a escalada da
disputa reduz os polemistas à
condição de galos furiosos engalfinhados na rinha de suas
vaidades feridas. O espetáculo
diverte, mas a polêmica exaltada é a negação do diálogo.
O primeiro sinal de degeneração da polêmica é a exacerbação dos ânimos. Quando o assunto é incerto, mas nos interessa de perto, a tendência natural é compensar a insegurança cognitiva com o calor das
emoções -é transformar a força do acreditar em critério de
verdade.
Vale aqui o alerta de Bertrand Russell: "Nenhuma opinião deveria ser defendida com
fervor. Ninguém mantém fervorosamente que 7 x 8 = 56,
pois se pode mostrar que isto é
o caso. O fervor apenas se faz
necessário quando se trata de
sustentar uma opinião que é
duvidosa ou demonstravelmente falsa". O calor da crença
trai a falta de luz.
Mas o que é mais perturbador
na dinâmica de polêmicas acaloradas é a propensão espontânea das partes em conflito para
distorcer as idéias dos seus oponentes. A inocência da operação é a regra. Como mergulhar
numa disputa sem estar do lado certo? Como embarcar numa controvérsia sem estar coberto de razão?
Mesmo em circunstâncias
normais, o mal-entendido é
uma força de primeira ordem
na história das idéias. "A fama", observou certa feita o
poeta alemão Rilke, "é a quintessência dos mal-entendidos
que se juntam a um nome". É o
que dizia, a seu modo, Nelson
Rodrigues: "A nossa reputação
é a soma dos palavrões que inspiramos nas esquinas, salas e
botecos".
No caso das polêmicas, porém, a força do mal-entendido
torna-se quase irresistível. O
talento natural de qualquer
polemista que se preze para
empobrecer e desfigurar as
idéias de seus oponentes e rivais é um dos traços mais assombrosos da vida intelectual,
principalmente se levarmos em
conta o fato de que um bom polemista, ao que tudo indica,
quase nunca está ciente da extensão de sua proeza.
Até aqui o dorso liso dos conceitos gerais. Permita-me agora, paciente leitor, ilustrar o
que disse superando a minha
aversão a polêmicas e tomando
como exemplo específico a réplica, publicada na Folha do
último sábado, em que o teólogo e professor da PUC-SP Antonio Marchionni contesta minha coluna de duas semanas
atrás neste espaço.
Ao contrário do que afirma
Marchionni, o propósito do
meu artigo não era examinar a
encíclica papal "Fé e Razão", o
que demandaria um outro tratamento, mas sim -como aliás
o título deixa expressamente
claro-, discutir as certezas
morais do papa João Paulo 2º,
analisando em particular a sua
questionável base epistêmica.
Adotando postura algo provocativa, procurei mostrar
que, assim como o Vaticano reconhece hoje o equívoco de tentar barrar o avanço da ciência
com dogmas e bulas papais,
talvez fosse o caso de a Igreja
Católica se abrir para a possibilidade de estar cometendo
enganos análogos no tocante a
interdições que teima em fixar
no campo das práticas humanas.
Se a nova encíclica é de fato
um gesto conciliatório e um
apelo à razão -buscando o
diálogo com o mundo secular e
admitindo um "pluralismo de
posições relevantes"-, como
fica então o absolutismo ético
do papa em questões como o
uso de contraceptivos e preservativos, sexo fora do casamento, aborto, eutanásia, homossexualismo e divórcio?
A pergunta central era essa.
Se o artigo tivesse sido bem-sucedido, teria suscitado não um
elogio ou um ataque, mas uma
resposta: uma defesa clara e articulada da consistência entre
o apelo à razão da encíclica e o
recurso à "verdade revelada"
dos dogmas da igreja. Falhei.
Partindo de um entendimento torto quanto ao propósito do
artigo, Marchionni consegue a
dupla proeza de me imputar
"certezas céticas" que não tenho e, o que é mais grave, passar inteiramente ao largo da
questão central. O que poderia
ser uma divergência franca e
(quiçá) esclarecedora resulta,
desse modo, em melancólico e
ocioso mal-entendido.
Entre as certezas que me imputa o teólogo, considere a primeira: como afirmo o valor
normativo da lógica na busca
do conhecimento, então segue-
se que, para mim, "fora do saber lógico, não haveria saber".
A inferência não é válida. Reconhecer a importância da lógica não implica desconhecer
os seus limites ou atribuir a ela
um poder que não tem. Desde
quando prezar a lógica e afirmar que ela deve ser seguida
até onde puder chegar significa
dar a ela o monopólio exclusivo do saber?
Derivar uma coisa da outra é
incorrer em "non sequitur"
clássico. Não creio -e digo isso
com sinceridade- que se trate
de má-fé. O apreço do teólogo
pela lógica parece ser mesmo
menor que o meu.
O curioso é que, apesar da
"certeza" da qual padeço,
quem se desse ao trabalho poderia constatar que venho discutindo de maneira recorrente
neste espaço a questão dos limites da lógica e da racionalidade científica, tendo abordado o tema em nada menos que
seis artigos nos últimos meses
(dos dias 26/3, 23/4, 28/5, 18/6,
13/8 e 17/9).
A questão relevante, contudo,
é saber se a doutrina católica
dá respostas satisfatórias ao
que a ciência não alcança. Reconhecer os limites da lógica,
sim. Abrir mão dela e sacrificar
a razão no altar da autoridade
infalível da igreja, não.
Se alguém me convencer com
bons argumentos, por exemplo,
que não há circunstância concebível que justifique o aborto
ou a eutanásia, inclusive o risco de vida da mãe ou a morte
cerebral do paciente, ficarei feliz em poder mudar de opinião.
"Em discussões filosóficas",
lembra a máxima epicurista,
"quem perde ganha, à medida
que aprende mais".
Em lugar de sustentar a posição da igreja em questões morais, Marchionni fugiu da
questão e preferiu desautorizar
"Sua Divindade o sr. Giannetti" por ter ousado lembrar que
o papa Karol Wojtyla, como
qualquer outro animal humano, pode ser tão falível quanto
um de nós.
Mesmo que a lógica não vá
tão longe quanto poderíamos
desejar, é difícil imaginar que
se chegue a algum lugar sem
ela. E se a competência católica
em ética e metafísica fizer jus a
sua competência no campo da
ciência?
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