São Paulo, quinta, 19 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Requisitos da polêmica civilizada

EDUARDO GIANNETTI

Colunista da Folha

Por temperamento, sou avesso a polêmicas. Prezo o diálogo, o embate de idéias, a crítica franca. O problema é quando o espírito do confronto toma conta. Não raro, a escalada da disputa reduz os polemistas à condição de galos furiosos engalfinhados na rinha de suas vaidades feridas. O espetáculo diverte, mas a polêmica exaltada é a negação do diálogo.
O primeiro sinal de degeneração da polêmica é a exacerbação dos ânimos. Quando o assunto é incerto, mas nos interessa de perto, a tendência natural é compensar a insegurança cognitiva com o calor das emoções -é transformar a força do acreditar em critério de verdade.
Vale aqui o alerta de Bertrand Russell: "Nenhuma opinião deveria ser defendida com fervor. Ninguém mantém fervorosamente que 7 x 8 = 56, pois se pode mostrar que isto é o caso. O fervor apenas se faz necessário quando se trata de sustentar uma opinião que é duvidosa ou demonstravelmente falsa". O calor da crença trai a falta de luz.
Mas o que é mais perturbador na dinâmica de polêmicas acaloradas é a propensão espontânea das partes em conflito para distorcer as idéias dos seus oponentes. A inocência da operação é a regra. Como mergulhar numa disputa sem estar do lado certo? Como embarcar numa controvérsia sem estar coberto de razão?
Mesmo em circunstâncias normais, o mal-entendido é uma força de primeira ordem na história das idéias. "A fama", observou certa feita o poeta alemão Rilke, "é a quintessência dos mal-entendidos que se juntam a um nome". É o que dizia, a seu modo, Nelson Rodrigues: "A nossa reputação é a soma dos palavrões que inspiramos nas esquinas, salas e botecos".
No caso das polêmicas, porém, a força do mal-entendido torna-se quase irresistível. O talento natural de qualquer polemista que se preze para empobrecer e desfigurar as idéias de seus oponentes e rivais é um dos traços mais assombrosos da vida intelectual, principalmente se levarmos em conta o fato de que um bom polemista, ao que tudo indica, quase nunca está ciente da extensão de sua proeza.
Até aqui o dorso liso dos conceitos gerais. Permita-me agora, paciente leitor, ilustrar o que disse superando a minha aversão a polêmicas e tomando como exemplo específico a réplica, publicada na Folha do último sábado, em que o teólogo e professor da PUC-SP Antonio Marchionni contesta minha coluna de duas semanas atrás neste espaço.
Ao contrário do que afirma Marchionni, o propósito do meu artigo não era examinar a encíclica papal "Fé e Razão", o que demandaria um outro tratamento, mas sim -como aliás o título deixa expressamente claro-, discutir as certezas morais do papa João Paulo 2º, analisando em particular a sua questionável base epistêmica.
Adotando postura algo provocativa, procurei mostrar que, assim como o Vaticano reconhece hoje o equívoco de tentar barrar o avanço da ciência com dogmas e bulas papais, talvez fosse o caso de a Igreja Católica se abrir para a possibilidade de estar cometendo enganos análogos no tocante a interdições que teima em fixar no campo das práticas humanas.
Se a nova encíclica é de fato um gesto conciliatório e um apelo à razão -buscando o diálogo com o mundo secular e admitindo um "pluralismo de posições relevantes"-, como fica então o absolutismo ético do papa em questões como o uso de contraceptivos e preservativos, sexo fora do casamento, aborto, eutanásia, homossexualismo e divórcio?
A pergunta central era essa. Se o artigo tivesse sido bem-sucedido, teria suscitado não um elogio ou um ataque, mas uma resposta: uma defesa clara e articulada da consistência entre o apelo à razão da encíclica e o recurso à "verdade revelada" dos dogmas da igreja. Falhei.
Partindo de um entendimento torto quanto ao propósito do artigo, Marchionni consegue a dupla proeza de me imputar "certezas céticas" que não tenho e, o que é mais grave, passar inteiramente ao largo da questão central. O que poderia ser uma divergência franca e (quiçá) esclarecedora resulta, desse modo, em melancólico e ocioso mal-entendido.
Entre as certezas que me imputa o teólogo, considere a primeira: como afirmo o valor normativo da lógica na busca do conhecimento, então segue- se que, para mim, "fora do saber lógico, não haveria saber".
A inferência não é válida. Reconhecer a importância da lógica não implica desconhecer os seus limites ou atribuir a ela um poder que não tem. Desde quando prezar a lógica e afirmar que ela deve ser seguida até onde puder chegar significa dar a ela o monopólio exclusivo do saber?
Derivar uma coisa da outra é incorrer em "non sequitur" clássico. Não creio -e digo isso com sinceridade- que se trate de má-fé. O apreço do teólogo pela lógica parece ser mesmo menor que o meu.
O curioso é que, apesar da "certeza" da qual padeço, quem se desse ao trabalho poderia constatar que venho discutindo de maneira recorrente neste espaço a questão dos limites da lógica e da racionalidade científica, tendo abordado o tema em nada menos que seis artigos nos últimos meses (dos dias 26/3, 23/4, 28/5, 18/6, 13/8 e 17/9).
A questão relevante, contudo, é saber se a doutrina católica dá respostas satisfatórias ao que a ciência não alcança. Reconhecer os limites da lógica, sim. Abrir mão dela e sacrificar a razão no altar da autoridade infalível da igreja, não.
Se alguém me convencer com bons argumentos, por exemplo, que não há circunstância concebível que justifique o aborto ou a eutanásia, inclusive o risco de vida da mãe ou a morte cerebral do paciente, ficarei feliz em poder mudar de opinião. "Em discussões filosóficas", lembra a máxima epicurista, "quem perde ganha, à medida que aprende mais".
Em lugar de sustentar a posição da igreja em questões morais, Marchionni fugiu da questão e preferiu desautorizar "Sua Divindade o sr. Giannetti" por ter ousado lembrar que o papa Karol Wojtyla, como qualquer outro animal humano, pode ser tão falível quanto um de nós.
Mesmo que a lógica não vá tão longe quanto poderíamos desejar, é difícil imaginar que se chegue a algum lugar sem ela. E se a competência católica em ética e metafísica fizer jus a sua competência no campo da ciência?



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.