São Paulo, sexta, 19 de dezembro de 1997.




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FORNADA DO MILÊNIO
O perigo em lata

GERALD THOMAS
em Nova York

Quando Noam Chomski escreveu, há mais de 20 anos, que o perigo do futuro viria embalado numa lata, mal podia imaginar que sua previsão se transformaria numa espécie de profecia.
E, quando Andy Warhol elevou a lata ao status de totem da modernidade, naquela mesma década, será que estava nos enviando uma mensagem subliminar?
Os "enlatados" de Chomski e Warhol faziam alusões ao mundo desvairado da sociedade superficial e consumista e colocavam a indústria da propaganda no cerne da vida do futuro.
Mal sabiam eles que a propaganda traria à tona sinistros e complexos jogos de significados, embaralhando realidade com ficção e criando uma acirrada guerra de audiência entre fato e suposição. Mal sabiam eles que no centro do consumismo estaria a notícia, o evento, a ação.
Fato ou ficção, a guerra de nervos está em voga como nunca. Unanimemente, as TVs e os jornais não param de nos alertar sobre um possível (e provável) ataque terrorista por parte dos iraquianos. E, em vez de mísseis ou bombas alucinantes, o perigo iminente, diz a mídia, virá em forma de um gás enlatado.
A superpotente "arma" é praticamente indetectável e poderá ser colocada em qualquer ponto da cidade, desde uma lata de lixo até dentro de um arbusto do Central Park, pois seu tamanho (igual a um mero aerossol ou refrigerante) facilita qualquer ato terrorista.
Segundo os experts, se deixada aberta em qualquer ponto da cidade, o conteúdo bacteriológico do enlatado poderia matar, sem explosões ou sirenes, e em minutos, 2 milhões de habitantes.
Esse gás seria 30 vezes mais potente que aquele desenvolvido pelos cientistas do nazismo e usado no extermínio dos judeus nos campos de concentração. Uma versão mais branda dele foi usada no metrô de Tóquio há alguns anos. Se o terrorista iraquiano tiver alguma ironia e conhecimento da história da arte, colocará seu gás dentro de uma lata de sopa de cogumelos da "Campbell".
Mas o quadro não está pra brincadeiras e nem pra especulações artísticas. A mídia está anunciando, diariamente, que estamos perto de um confronto.
O Departamento de Estado e o FBI afirmam (com espantosa veracidade) que as Forças Armadas não estão preparadas para um evento terrorista dessa grandeza. O Pentágono, fragilizado como nunca, admite ineficiência em lidar com ataques terroristas, depois que falharam diversos ensaios das tropas de emergência em quatro cidades dos EUA.
Será que estamos mesmo à beira de uma guerra? Se a "coisa" está assim tão preta entre os dois países como quer fazer crer a mídia, é de se questionar por quanto tempo mais a imagem pública de Clinton poderá se dar ao luxo de não reagir às constantes provocações de Saddam Hussein.
Será que a mídia está correta em descrever o trapaceiro Hussein como um maluco, suicida e diabólico? Será que Hussein é doido o suficiente para fazer com que o presidente americano aja de acordo com a expectativa construída pela mídia americana?
A mídia, numa corrida desenfreada pelo mais alto Ibope, só se dará por satisfeita quando alguma grande tragédia acontecer. Afinal, como começa uma guerra? Será que não é quando uma sensação (ilusória e, muitas vezes, fictícia) de "beco sem saída" tem que ser substituída por um fato real e drástico?
Até que ponto a propaganda é a causa principal nesse confronto dos egos e honras dos chefes de Estado, pressionados -cada um por um lado- pela "opinião pública"? E o que é a opinião pública, senão um denominador comum subtraído dos editorialistas, dos formadores de opinião, ou seja, da própria indústria de notícias?
A mídia americana provoca Clinton tanto quanto Hussein, ambos, de certa maneira, "vítimas" da guerra pelo Ibope.
"Se fosse Reagan, o Iraque já não existiria há muito tempo", grita um artigo do tablóide "New York Post". "Extermine o rato do Oriente", berra o "Daily News". E assim, a "guerra da propaganda" vai dando formas definitivas, alarmantes e, possivelmente, irreversíveis a essa panela da pressão.
Francos como nunca, alguns estrategistas desabafam: "Estamos perdendo tempo", afirma, nervoso, um porta-voz do Pentágono, "pois estamos claramente perdendo a guerra da propaganda".
Mas, seguindo o mesmo pensamento de Chomski, a mídia-show-notícia acabará convencendo a poucos. Ontem mesmo, uma equipe de jornalismo fez um teste maquiavélico, deixando uma lata prateada (suspeitíssima) aberta em pleno Times Square. Ninguém a notou.
A menos de dez dias do Natal, o verdadeiro pânico se dava nas portas das grandes lojas da cidade. Mesmo em clima de pré-guerra, o único enlatado a surtir efeito nessa época do ano é o comercial que vende o presente de Natal... A população parece mesmo é acreditar em Papai Noel.




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