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GASTRONOMIA
Rato do banhado e artistas underground
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
O sapateiro não deve ir
além das chinelas, e a cozinheira..., das panelas. Sou da geração que assistia a Doris Day cantando "que será, será", e a Cary
Grant namorando Audrey Hepburn. Ah, e ao Mario Lanza, aquele canastrão.
Por essas e por outras, não vou
nem tentar entender os filmes do
sr. Peter Kubelka, que esteve de
visita no Brasil na semana passada, fazendo conferências que terminaram no domingo, no Centro
Cultural Banco do Brasil.
E no domingo o assunto era comida como arte, o que deveria interessar a esta coluna. Fui à internet, li o livro "Peter Kubelka, a Essência do Cinema", de Carlos
Adriano e Bernardo Vorobow.
Ótimo, bem-feito, uma bela reportagem, uma entrevista excelente. Por ali, podem conhecer o
homem melhor do que pessoalmente.
Um parágrafo sobre o cineasta
já me desanimou um pouco, prevendo que lá vinha chumbo grosso. "Kubelka nasceu em 1934 em
Viena. Fez seu primeiro curta em
1954/55. Desde então, durante estes últimos quase 50 anos, finalizou seis filmes, que perfazem no
total 49 minutos e 33 segundos de
duração... Estes quase 50 minutos
de cinema suplantam de longe a
maioria das infinitas horas produzidas ao longo do último século
pela indústria do cinema corrente
nos últimos anos."
Entenderam, não é? Em 50 anos
fez 50 minutos de filme, um minuto de filme por ano. Um minuto de filme por ano! Imediatamente levantei as orelhas, sabia
que era daquelas situações em
que você vai ao cinema e, das
duas, uma. Ou o cara é uma fraude, ou você é uma besta, culpa da
Doris Day.
Eu me senti assim com a visão
de um ratão do banhado em oposição à visão de um austríaco artista de vanguarda. Fazer o quê?
Vamos então à conferência sobre comida. Uma mesa comprida
com vários ingredientes, um homem grande falando um português razoável, que ele fez questão
de estudar para vir fazer as palestras na língua da terra.
Prepara maionese. Fala sobre:
Os utensílios como extensão da
mão. "A tigela poderia ser a folha
seca da palmeira, a colher é a mão
côncava, o garfo com seus dentes
são os dedos e os dentes caninos, a
pedra que achei na praça da Sé (!)
é a faca."
"Os utensílios são a carteira de
identidade do homem, que se
transforma conforme o utensílio
que usa. O cozinheiro com a faca
na mão é um. O homem com a
pena na mão é outro..."
"Dentro das metáforas estão a
análise e a síntese, constantes da
cozinha."
"A análise está na separação entre o bem e o mal. O bem, no caso
da maionese, são as gemas, e o
mal, as claras."
"A síntese consiste em juntar as
gemas com azeite, sal e limão."
"Na cozinha, o homem separa
os elementos da natureza e os junta do modo que quer, uma das atividades mais livres e criativas do
ser humano."
"Todas as artes colocam os conceitos um ao lado do outro e trabalham com a metáfora. Escolho
umas framboesas e as como com
leite. Faço leite de framboesa,
uma metáfora concreta."
Prossegue, enfatizando a importância do gesto de cozinhar. O
gesto como coreografia, como
dança, como repetição rítmica.
Mexe a maionese como a mãe e a
avó mexiam.
"O que o homem cozinha é uma
amostra de seu poder. Para os
ovos precisei de galinhas, o azeite
pressupõe um campo de oliveiras,
o sal representa todo o trabalho
do homem para extraí-lo."
"O que é uma linguiça, além de
alguma coisa transformada pelo
homem, na cozinha? Um animal
do paraíso, com todas as qualidades de gosto, textura e sem os defeitos do bicho que seriam os ossos, as peles, as partes duras. Nenhum trabalho, só prazer."
"A comida que faço mostra o alcance da minha influência, são
declarações do meu poder. Se na
Europa uso pimenta, demonstro
o poder da rota inglesa, alargo
meu reino. Todos os pratos são
declarações de poder e alcance
geográfico, o prato é uma mensagem a ser lida, uma declaração de
identidade."
"Na Nova Guiné, comeram dois
homens que riram e estranharam
a comida. Quem ri do meu prato
nega minha existência."
O nosso cineasta passeou, viu
comidas variadas, a farinha, foi ao
Mercado Municipal, interessou-se pela cozinha de rua. Todas
aquelas banquinhas de churrasco
de gato presididas por artistas,
prenhes de metáforas, transformando a natureza em cultura para os sentidos.
"Nós criamos a maionese, o
churrasco e daí surge a pergunta:
"Quem nos criou?". As dúvidas
existenciais partiram da cozinha.
Deus cozinhou o mundo e, no sétimo dia, o experimentou e achou
que estava bom."
"Cozinhar é preciso. A cozinha
ajuda a conservar a integridade
do ser humano."
Pronto, repetiu-se um pouco,
inventou mais umas e outras; para falar a verdade, não gostei muito da conferência. Acho que foi
bobagem essa história de falar em
português: ganha-se no entendimento da linguagem, perde-se o
homem.
Definitivamente o sr. Kubelka é
vanguarda no cinema, já foi expulso do próprio país e até já apanhou, mas, em matéria de teorias
culinárias, o rato do banhado era
o conferencista, e nós, profissionais do fogão, os artistas underground.
PETER KUBELKA - A ESSÊNCIA DO
CINEMA. Autores: Carlos Adriano e
Bernardo Vorobow. Editora: Baboushka.
Quanto: R$ 40 (150 págs.).
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