São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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GASTRONOMIA

Rato do banhado e artistas underground

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

O sapateiro não deve ir além das chinelas, e a cozinheira..., das panelas. Sou da geração que assistia a Doris Day cantando "que será, será", e a Cary Grant namorando Audrey Hepburn. Ah, e ao Mario Lanza, aquele canastrão.
Por essas e por outras, não vou nem tentar entender os filmes do sr. Peter Kubelka, que esteve de visita no Brasil na semana passada, fazendo conferências que terminaram no domingo, no Centro Cultural Banco do Brasil.
E no domingo o assunto era comida como arte, o que deveria interessar a esta coluna. Fui à internet, li o livro "Peter Kubelka, a Essência do Cinema", de Carlos Adriano e Bernardo Vorobow. Ótimo, bem-feito, uma bela reportagem, uma entrevista excelente. Por ali, podem conhecer o homem melhor do que pessoalmente.
Um parágrafo sobre o cineasta já me desanimou um pouco, prevendo que lá vinha chumbo grosso. "Kubelka nasceu em 1934 em Viena. Fez seu primeiro curta em 1954/55. Desde então, durante estes últimos quase 50 anos, finalizou seis filmes, que perfazem no total 49 minutos e 33 segundos de duração... Estes quase 50 minutos de cinema suplantam de longe a maioria das infinitas horas produzidas ao longo do último século pela indústria do cinema corrente nos últimos anos."
Entenderam, não é? Em 50 anos fez 50 minutos de filme, um minuto de filme por ano. Um minuto de filme por ano! Imediatamente levantei as orelhas, sabia que era daquelas situações em que você vai ao cinema e, das duas, uma. Ou o cara é uma fraude, ou você é uma besta, culpa da Doris Day.
Eu me senti assim com a visão de um ratão do banhado em oposição à visão de um austríaco artista de vanguarda. Fazer o quê?
Vamos então à conferência sobre comida. Uma mesa comprida com vários ingredientes, um homem grande falando um português razoável, que ele fez questão de estudar para vir fazer as palestras na língua da terra.
Prepara maionese. Fala sobre:
Os utensílios como extensão da mão. "A tigela poderia ser a folha seca da palmeira, a colher é a mão côncava, o garfo com seus dentes são os dedos e os dentes caninos, a pedra que achei na praça da Sé (!) é a faca."
"Os utensílios são a carteira de identidade do homem, que se transforma conforme o utensílio que usa. O cozinheiro com a faca na mão é um. O homem com a pena na mão é outro..."
"Dentro das metáforas estão a análise e a síntese, constantes da cozinha."
"A análise está na separação entre o bem e o mal. O bem, no caso da maionese, são as gemas, e o mal, as claras."
"A síntese consiste em juntar as gemas com azeite, sal e limão."
"Na cozinha, o homem separa os elementos da natureza e os junta do modo que quer, uma das atividades mais livres e criativas do ser humano."
"Todas as artes colocam os conceitos um ao lado do outro e trabalham com a metáfora. Escolho umas framboesas e as como com leite. Faço leite de framboesa, uma metáfora concreta."
Prossegue, enfatizando a importância do gesto de cozinhar. O gesto como coreografia, como dança, como repetição rítmica. Mexe a maionese como a mãe e a avó mexiam.
"O que o homem cozinha é uma amostra de seu poder. Para os ovos precisei de galinhas, o azeite pressupõe um campo de oliveiras, o sal representa todo o trabalho do homem para extraí-lo."
"O que é uma linguiça, além de alguma coisa transformada pelo homem, na cozinha? Um animal do paraíso, com todas as qualidades de gosto, textura e sem os defeitos do bicho que seriam os ossos, as peles, as partes duras. Nenhum trabalho, só prazer."
"A comida que faço mostra o alcance da minha influência, são declarações do meu poder. Se na Europa uso pimenta, demonstro o poder da rota inglesa, alargo meu reino. Todos os pratos são declarações de poder e alcance geográfico, o prato é uma mensagem a ser lida, uma declaração de identidade."
"Na Nova Guiné, comeram dois homens que riram e estranharam a comida. Quem ri do meu prato nega minha existência."
O nosso cineasta passeou, viu comidas variadas, a farinha, foi ao Mercado Municipal, interessou-se pela cozinha de rua. Todas aquelas banquinhas de churrasco de gato presididas por artistas, prenhes de metáforas, transformando a natureza em cultura para os sentidos.
"Nós criamos a maionese, o churrasco e daí surge a pergunta: "Quem nos criou?". As dúvidas existenciais partiram da cozinha. Deus cozinhou o mundo e, no sétimo dia, o experimentou e achou que estava bom."
"Cozinhar é preciso. A cozinha ajuda a conservar a integridade do ser humano."
Pronto, repetiu-se um pouco, inventou mais umas e outras; para falar a verdade, não gostei muito da conferência. Acho que foi bobagem essa história de falar em português: ganha-se no entendimento da linguagem, perde-se o homem.
Definitivamente o sr. Kubelka é vanguarda no cinema, já foi expulso do próprio país e até já apanhou, mas, em matéria de teorias culinárias, o rato do banhado era o conferencista, e nós, profissionais do fogão, os artistas underground.


PETER KUBELKA - A ESSÊNCIA DO CINEMA. Autores: Carlos Adriano e Bernardo Vorobow. Editora: Baboushka. Quanto: R$ 40 (150 págs.).


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