São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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COMENTÁRIO

Músico pode relativizar o furor centrista da tropicália

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

A quem desconfie que o ministério de Luiz Inácio Lula da Silva esteja tomando semblante tucano demais, um novo argumento pode ser anexado com a escolha de Gilberto Gil para a pasta da Cultura do governo do PT.
Embora nunca pertencesse ao PSDB (mas sim ao PMDB e, atualmente, ao PV), Gil, 60, flertou mais de uma vez com o ministério de Fernando Henrique Cardoso, com quem teve proximidade constante nos oito anos tucanos.
Mais importante que isso, o núcleo duro do tropicalismo -ou seja, Gilberto Gil e Caetano Veloso- esteve sempre em sintonia tácita com o modo FHC de governar. Era da raiz do movimento musical de 1968 rejeitar e combater radicalismos de esquerda e de direita, e eles têm se mantido afinados com essa ética desde então.
Vestem-se ora de centro-esquerda (votando em Brizola), ora de centro-direita (fazendo rapapés a Antonio Carlos Magalhães), mas jamais se permitem fugir das cercanias do centrão.
No bate-papo em forma de livro "O Mundo em Português - Um Diálogo" (98), FHC provocou polêmica ao comentar a MPB com o ex-presidente de Portugal Mário Soares, desmanchando-se em elogios a Caetano e Gil e classificando o petista histórico Chico Buarque como "esquerda convencional" -é o que o PSDB sempre disse do PT. Ironicamente, Lula leva Chico para a festa da posse. E Gil para o ministério da Cultura.
Não ficou registrada como brilhante sua passagem pela vida política (como secretário de cultura e vereador, na Bahia), e ele ainda teve de reverter uma tendência de ocaso na música, para o que contou com o socorro de Caetano, que o convocou para o disco em dupla "Tropicália 2" (1993).
De influência capital nos recentes episódios da lei da numeração, Gil estará frente a frente com uma tragédia que acomete a indústria a que ele pertence e a qual o PT promete combater: a pirataria.
É tempo em que um dos bens primordiais do modo brasileiro de ser -a música popular- sofre sérios riscos de sobrevivência. Lula acena para isso ao indicar Gil, mesmo sabendo que seu agora ministro até as eleições de 2002 estava no cantinho de lá do muro.
Se por um lado a postura tropicalista de Gil pode neutralizar o perigo dos ímpetos folclorizantes da esquerda tradicional (sua presença no ministério vai além do tom popular caro ao petismo e chega ao pop), por outro ele esteve silenciosamente alinhado com FHC em sua visão mercadológica da cultura. Um dos megaespetáculos que contaram com patrocínio de lei federal de incentivo foi o encontro musical entre Milton Nascimento e Gil, em 2000.
Se Gil irá relativizar o furor centrista/marqueteiro da tropicália e se mover à esquerda ou se Lula é que estará se atucanando no âmbito cultural é pergunta para começar a ser respondida agora.
Por enquanto, fica um outro dado paralelo: Gilberto Gil é negro e nordestino, embora não originário de classe social desfavorecida. Tem em parte a aura múltipla que Lula advogava, mesmo que não militasse pelos direitos negros, a não ser em momentos esparsos (como quando lançou o disco "Refavela", em 1977, ou quando compôs o funk-rock de protesto "A Mão da Limpeza", em 1984).
Defensor ferrenho da branco-negritude baiana da axé music, Gil por outro lado dedicou seu disco "Quanta" (97) a dois dos mais altos artistas jovens surgidos nos 90, o já morto Chico Science e a (então) ainda viva Cássia Eller. Irá se encontrar com o entusiasmo petista pelo rap e pela crua questão da exclusão das populações faveladas. Terá, como gestor político da cultura, o desafio de equacionar sua própria militância negra indecisa com o discurso petista de inclusão sociocultural da população pobre e imensamente negra (a tal "negra solidão" que ele relatou em 68, em "Marginália 2") do Brasil.


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