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CONTARDO CALLIGARIS
A estrela na lapela
Quarta-feira da semana
passada, em São Paulo. Tomo meu café contemplando a
imagem de capa da Folha: o
aperto de mão entre o presidente
eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula
da Silva, e George W. Bush, presidente dos Estados Unidos.
Uma assimetria: Bush traz, na
lapela, uma bandeira dos EUA, e
Lula arvora a estrela vermelha do
PT. Toca o telefone, e começa
uma ciranda de comentários que
duram o dia inteiro. "Elegemos o
presidente do Brasil ou o do PT?"
"O que é, voltou o Komintern?"
Na quinta-feira, aparecem as
fotografias do encontro com Vicente Fox, presidente do México:
na lapela de Lula, nenhum distintivo. Parece que Lula vestiu a estrela especificamente para o encontro com Bush.
Imagino que ele tenha usado o
distintivo para declarar sua fidelidade às aspirações e ao percurso
que o levaram até o encontro no
Salão Oval da Casa Branca. Lembrete: serei cordial, engolirei os
sapos necessários, mas não renegarei a estrela que representa
meu sonho de um mundo solidário e generoso. Ora, do lado americano, como foi recebido o gesto?
As vicissitudes da estrela vermelha tornam seu valor simbólico
problemático. A estrela no chapéu de um chinês durante a longa
marcha era o símbolo de uma
grande esperança. Décadas depois, em Pequim, a mesma estrela
no chapéu de um policial ou de
um burocrata era o símbolo do
terror. Soviéticos, chineses, castristas, coreanos do norte e vietnamitas do norte fizeram do bem
comum sonhado por todos um
pretexto para moer os indivíduos,
e, repetidamente, a estrela vermelha virou emblema da repressão.
Mas pouco importa: na Casa
Branca, certamente, ninguém
confundiu o presidente do Brasil,
democraticamente eleito, com
um burocrata chinês.
No entanto o uso do distintivo
deve ter sido entendido como
uma provocação e, portanto, como uma fraqueza: em suma, como uma molecagem. Pense no
que acontece quando um adolescente insiste em usar seu piercing
no nariz logo no dia em que veste
terno e gravata para enfrentar
uma entrevista de seleção. O jovem acha que ele está, assim, reivindicando sua autonomia: preciso de emprego e você me intimida, mas, cuidado, não pense que
deixarei de usar meu piercing,
viu? O detalhe incôngruo é, de fato, a prova de sua fragilidade. Pela necessidade de conclamar sua
independência na hora de apresentar-se e de pedir, ele revela que
está se sentindo ameaçado por
sua própria inferioridade. Em
boa psicologia de recursos humanos, é por isso que o dito jovem
não conseguiria o estágio ou o
emprego. Ele sairia esbravejando:
fui discriminado por causa de
meus anseios de liberdade! Na
verdade, seu piercing revelou não
um excesso de independência (essa seria uma qualidade prezada),
mas uma falta de segurança.
E o americano médio? Quem se
interessa por política internacional (uma minoria, sem dúvida)
sabe que o presidente eleito do
Brasil pertence a um partido de
esquerda. Mas a foto do encontro
com Bush mal apareceu na imprensa. Segunda-feira de manhã,
em Nova York, pergunto a Marshall Blonsky (professor de semiologia na Tisch School of the Arts e
autor de "American Mythologies") como reagiria, a seu ver, o
americano médio se os jornais tivessem mostrado em primeira
página a foto colorida que nós vimos no Brasil, com a estrela vermelha na lapela de Lula. Responde: "Ficariam exasperados. Pensariam: esse cara está procurando
nas ruínas sinistras do passado
uma maneira para mostrar a língua a Bush e à gente. Nós estamos
em guerra, ele vem pedir crédito e
abana com as mãos ao lado das
orelhas cantarolando: olhem para a minha estreeela... nana nanana. É tudo o que tem para nos
dizer?".
Mas há uma boa chance, acrescenta Blonsky, de que, para os
mais jovens, a estrela vermelha
evoque sobretudo uma propaganda da Heineken, a cerveja da
estrela. De fato, se o retrato do
Che pode estar em cada quarto de
estudante e embelezar um famoso biquíni apresentado por Gisele
Bündchen, por que a lapela de
um presidente não seria alugada
como espaço para a promoção de
logomarcas?
Difícil não ouvir, no cinismo divertido de Blonsky, um fundo de
ressentimento. Decididamente,
não é o melhor momento para fazer molecagens com os americanos.
Segunda-feira à tarde, por volta
das 15h, passam na minha rua,
em Manhattan, as coortes dos estudantes que saem da Park West
High School, uma escola pública.
Enquanto me dirijo a um bar para terminar de escrever esta coluna, cruzo com um adolescente negro que veste o tradicional casaco
preto de náilon da North Face,
um moletom com capuz cinza e
um gorro de lã com, bem no meio
da testa, uma estrela vermelha.
Para verificar a previsão de
Blonsky, aponto para a estrela e
comento: "Cool" (legal). Martin
F., 17, pára, e conversamos no frio.
Mostro-lhe a capa da Folha de
quarta-feira. Quando enxerga a
estrela, exclama: "Cooool" (leeegal). Imagina que Lula seja um
cara da Rússia. Faço-lhe notar
que os russos não têm mais nada
a ver com as estrelas vermelhas.
"Como não? São as lojas dos russos que vendem essas estrelas em
qualquer canto do Brooklyn."
ccalligari@uol.com.br
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