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CARLOS HEITOR CONY
O vazio cheiro da morte
A secretária pegou o telefone e
avisou lá dentro. A luzinha verde
se acendeu em cima da porta de
jacarandá que dividia a sala de
espera do santuário onde Marcelo Caseli era o deus e o sacerdote
de si mesmo.
- Pode entrar. Apenas um pedido: ele só pode dispor de meia
hora para a entrevista.
- Deixa comigo -disse o rapaz.
Caseli levantou-se, colocando
as mãos em cima da mesa, num
gesto ocioso de dono do terreno.
Era um belo homem: magro, mas
sólido; alto, mas não muito. Os
cabelos começavam a ficar grisalhos, mas eram fortes, sadios. Os
olhos azuis pareciam brancos,
dentro do rosto queimado pelos
bronzeadores dos salões de beleza
do Clube Paulistano. Caseli se
cuidava, dizia-se biologicamente
correto. Aos 56 anos, tinha um físico jovem, elástico. Um empresário moderno, bem informado,
bem cultivado e -como resultado de tudo tão bem- bem-sucedido.
- Todos sabem que o senhor
foi um herói da Resistência italiana durante a Segunda Guerra
Mundial...
- Digamos que eu participei
da Resistência. Apenas isso.
- Lembra de algum lance dramático? Consta que o senhor chegou a ser prisioneiro dos alemães...
- Acho forte a expressão "prisioneiro". Não cheguei a ser preso.
Meu grupo destruíra um tanque,
numa estrada marginal que contorna Monte Cassino. Nós tínhamos vindo de Nápoles, a pé, aproveitando a noite. Pela madrugada, avistamos o tanque parado. A
tripulação parecia dormir. Jogamos a granada dentro dele. Foi
tudo.
- E depois...
- Depois surgiu alemão de todos os lados. Fomos levados a um
acampamento, nas proximidades
de Roma. Saltamos do jipe, e um
oficial mandou que cavássemos
uma vala. Ficamos de costas, os
braços levantados. O oficial chamou alguns soldados para ajudá-lo no fuzilamento. Uma descarga
de metralhadora e nós cairíamos
na vala. Era só jogar a terra por
cima.
- O senhor viu a morte de cara...
- Impressão sua. A morte não
tem cara. Se tem alguma coisa,
tem um cheiro... um cheiro esquisito, de vidro vazio que é destampado depois de muito tempo...
- Só isso? Um cheiro?
- O fato é que estou aqui. Ao
começar a rajada, tive tempo para pular dentro da vala. Os cadáveres dos companheiros me ocultaram parcialmente. Esperei algum tempo. Jogaram terra em cima, mas pouca, não deu para
tampar o buraco. Os alemães foram embora, só ficou um soldado.
Com uma espécie de pá, ele procurava socar a terra. Parou para
descansar. Alguma coisa o distraiu e ele se voltou em direção à
estrada, ficando de costas para a
vala. Removi a terra que me cobria, eu conseguia respirar um
pouco, a maior parte da cabeça ficara de fora. Tive sorte, ele não se
virou, pude sair da vala. Desarmei-o com facilidade. E...
Caseli abaixou os olhos, como se
tivesse pudor:
- ... e matei-o. Foi a minha
única morte individual. Numa
guerra, a gente mata sem ver nem
contar. Mas aquele soldado... ele
estava de costas... foi fácil... mas
foi medonho...
- E a guerra acabou para o senhor?
- Em certo sentido, sim.
- Sua adaptação no Brasil foi
difícil?
- A pergunta foge do nosso assunto. Digamos que eu soube vencer. Para isso, trabalhei bastante.
E trabalhei certo.
- O que o senhor chama de
trabalhar certo?
- Estabelecer prioridades e
cumpri-las por etapas.
- Pode adiantar alguma coisa
sobre a sua prioridade "A"?
- Isso é mais fácil. A prioridade "A" de qualquer sistema, de
qualquer processo, de qualquer
aventura pessoal ou coletiva, é
continuar vivo.
- Aprendeu isso naquele momento, diante da vala aberta para sepultar o seu cadáver?
- Creio que sim. O que seria de
um homem que não aprendesse
alguma coisa naquela situação?
O jornalista sentiu que a entrevista havia acabado. Comprometera-se a perguntar somente sobre
o passado de Marcelo Caseli. Em
liberdade condicional, o advogado dele aprovara a entrevista desde que fosse apenas sobre o passado.
Despediu-se, aproximou-se da
porta, sabia que, do outro lado da
sala, a secretária cronometrava o
tempo do encontro. Foi surpreendido com uma pergunta de Caseli:
- O senhor não quer saber se
eu matei mesmo a minha mulher?
- Bem... prometi ao advogado
não fazer perguntas a esse respeito...
- Pois respondo sem ter sido
perguntado. Sim, matei minha
mulher.
- O senhor já havia confessado
isso, todos sabem que matou sua
mulher. Se eu tivesse de fazer
qualquer pergunta sobre o assunto, seria sobre o motivo... não está
bem claro se foi legítima defesa...
defesa da honra... esses truques
que os advogados usam para defender o réu... mas, se o senhor
não quiser falar, não tenho a intenção nem posso forçá-lo a dizer
o que não quer...
- Acho que já contei o que interessava. Sabe... aquele cheiro de
vidro vazio destampado há muito
tempo... o cheiro da morte... Naquela noite, quando cheguei em
casa, ela me recebeu como sempre, perguntando pelo meu dia,
beijando-me na testa... mas dela
vinha aquele cheiro... sei que não
convencerei ninguém com este argumento... mas contarei tudo,
menos a verdade.
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