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São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O vazio cheiro da morte

A secretária pegou o telefone e avisou lá dentro. A luzinha verde se acendeu em cima da porta de jacarandá que dividia a sala de espera do santuário onde Marcelo Caseli era o deus e o sacerdote de si mesmo.
- Pode entrar. Apenas um pedido: ele só pode dispor de meia hora para a entrevista.
- Deixa comigo -disse o rapaz.
Caseli levantou-se, colocando as mãos em cima da mesa, num gesto ocioso de dono do terreno. Era um belo homem: magro, mas sólido; alto, mas não muito. Os cabelos começavam a ficar grisalhos, mas eram fortes, sadios. Os olhos azuis pareciam brancos, dentro do rosto queimado pelos bronzeadores dos salões de beleza do Clube Paulistano. Caseli se cuidava, dizia-se biologicamente correto. Aos 56 anos, tinha um físico jovem, elástico. Um empresário moderno, bem informado, bem cultivado e -como resultado de tudo tão bem- bem-sucedido.
- Todos sabem que o senhor foi um herói da Resistência italiana durante a Segunda Guerra Mundial...
- Digamos que eu participei da Resistência. Apenas isso.
- Lembra de algum lance dramático? Consta que o senhor chegou a ser prisioneiro dos alemães...
- Acho forte a expressão "prisioneiro". Não cheguei a ser preso. Meu grupo destruíra um tanque, numa estrada marginal que contorna Monte Cassino. Nós tínhamos vindo de Nápoles, a pé, aproveitando a noite. Pela madrugada, avistamos o tanque parado. A tripulação parecia dormir. Jogamos a granada dentro dele. Foi tudo.
- E depois...
- Depois surgiu alemão de todos os lados. Fomos levados a um acampamento, nas proximidades de Roma. Saltamos do jipe, e um oficial mandou que cavássemos uma vala. Ficamos de costas, os braços levantados. O oficial chamou alguns soldados para ajudá-lo no fuzilamento. Uma descarga de metralhadora e nós cairíamos na vala. Era só jogar a terra por cima.
- O senhor viu a morte de cara...
- Impressão sua. A morte não tem cara. Se tem alguma coisa, tem um cheiro... um cheiro esquisito, de vidro vazio que é destampado depois de muito tempo...
- Só isso? Um cheiro?
- O fato é que estou aqui. Ao começar a rajada, tive tempo para pular dentro da vala. Os cadáveres dos companheiros me ocultaram parcialmente. Esperei algum tempo. Jogaram terra em cima, mas pouca, não deu para tampar o buraco. Os alemães foram embora, só ficou um soldado. Com uma espécie de pá, ele procurava socar a terra. Parou para descansar. Alguma coisa o distraiu e ele se voltou em direção à estrada, ficando de costas para a vala. Removi a terra que me cobria, eu conseguia respirar um pouco, a maior parte da cabeça ficara de fora. Tive sorte, ele não se virou, pude sair da vala. Desarmei-o com facilidade. E...
Caseli abaixou os olhos, como se tivesse pudor:
- ... e matei-o. Foi a minha única morte individual. Numa guerra, a gente mata sem ver nem contar. Mas aquele soldado... ele estava de costas... foi fácil... mas foi medonho...
- E a guerra acabou para o senhor?
- Em certo sentido, sim.
- Sua adaptação no Brasil foi difícil?
- A pergunta foge do nosso assunto. Digamos que eu soube vencer. Para isso, trabalhei bastante. E trabalhei certo.
- O que o senhor chama de trabalhar certo?
- Estabelecer prioridades e cumpri-las por etapas.
- Pode adiantar alguma coisa sobre a sua prioridade "A"?
- Isso é mais fácil. A prioridade "A" de qualquer sistema, de qualquer processo, de qualquer aventura pessoal ou coletiva, é continuar vivo.
- Aprendeu isso naquele momento, diante da vala aberta para sepultar o seu cadáver?
- Creio que sim. O que seria de um homem que não aprendesse alguma coisa naquela situação?
O jornalista sentiu que a entrevista havia acabado. Comprometera-se a perguntar somente sobre o passado de Marcelo Caseli. Em liberdade condicional, o advogado dele aprovara a entrevista desde que fosse apenas sobre o passado.
Despediu-se, aproximou-se da porta, sabia que, do outro lado da sala, a secretária cronometrava o tempo do encontro. Foi surpreendido com uma pergunta de Caseli:
- O senhor não quer saber se eu matei mesmo a minha mulher?
- Bem... prometi ao advogado não fazer perguntas a esse respeito...
- Pois respondo sem ter sido perguntado. Sim, matei minha mulher.
- O senhor já havia confessado isso, todos sabem que matou sua mulher. Se eu tivesse de fazer qualquer pergunta sobre o assunto, seria sobre o motivo... não está bem claro se foi legítima defesa... defesa da honra... esses truques que os advogados usam para defender o réu... mas, se o senhor não quiser falar, não tenho a intenção nem posso forçá-lo a dizer o que não quer...
- Acho que já contei o que interessava. Sabe... aquele cheiro de vidro vazio destampado há muito tempo... o cheiro da morte... Naquela noite, quando cheguei em casa, ela me recebeu como sempre, perguntando pelo meu dia, beijando-me na testa... mas dela vinha aquele cheiro... sei que não convencerei ninguém com este argumento... mas contarei tudo, menos a verdade.


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