São Paulo, sábado, 19 de dezembro de 1998

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Nem tudo o que é atual desmancha no ar

Leonardo Colosso/Folha Imagem
Funcionários desmontam "pista de gelo" do artista Olafur Eliasson


CASSIANO ELEK MACHADO
da Reportagem Local

Uma semana depois do final da 24ª Bienal, Cinderela vai virando Gata Borralheira. Depois de atraírem 387.732 visitantes, muitas das obras apresentadas na megaexposição seguem um caminho frequentemente trilhado pela arte contemporânea: o sumiço.
A transformação da carruagem em abóbora começa já do lado de fora do prédio da Bienal.
Foi na fachada do pavilhão Ciccillo Matarazzo que Regina Silveira instalou a obra "Tropel". Nas próximas semanas, o vinil preto que a a artista plástica usou para construir pegadas de diversos animais será descolado impiedosamente da parede frontal da Bienal.
"Já sofri bastante com o desaparecimento das obras. Hoje, já estou acostumada", diz a artista.
Regina Silveira tem consolo. O vinil vai para o lixo, mas o projeto está todo arquivado em um disquete de computador. "A potencialidade da obra está guardada."
Arthur Barrio também perdeu a obra que mostrou na Bienal para a lixeira, mas colecionará para sempre sua potencialidade.
Por ser realizado com carne fresca, "Livro de Carne", do artista luso-brasileiro, não teria como não estragar. Mas Barrio poderá montar sua criação, como fez pela primeira vez em 1977, em qualquer lugar que houver um açougue.
Outro grupo de criadores não tem a mesma sorte. Artistas como Sandra Cinto estão no time dos que criaram obras com o destino "nunca mais". Durante um mês, ela preencheu uma parede branca da Bienal com desenhos delicados de velas, balanços e árvores.
Todo o universo que a artista gravou nessas paredes será encoberto na próxima semana por tinta branca. "Meus trabalhos são como viagens. Você vai para um lugar, vê coisas novas, pode fotografá-las, mas depois volta, e aquilo acaba."
O inglês Michael Craig-Martin é outro que tem sua viagem com os dias contados. Ele cobriu a parede que recebia todos visitantes do segundo andar da Bienal com desenhos figurativos de objetos do cotidiano, como cadeiras e sapatos.
Esses 250 m2 de pintura, com fundo cor-de-rosa choque, também serão banhados de branco, tal como era previsto pelo artista.
A pintura de Craig-Martin pode ser enquadrada no conceito "site specific", que reúne obras de arte feitas especialmente para o espaço em que serão exibidas.
Um caso mais claro de arte para um "lugar específico" é a instalação da norte-americana Judy Pfaff, que veio ao Brasil dois meses antes do começo da exposição para projetar sua criação "in loco".
Na última quinta-feira, a representante dos EUA na Bienal estava novamente "in loco", desta vez para desmontar a portentosa obra que criou com raízes, madeira e ferro. Ela não sabia o que faria com o contêiner de material que resultaria da "desmaterialização" de sua obra de arte.
"Acho que vou usar as vigas de ferro para sustentar videiras", disse a artista, que trabalha com obras "descartáveis" desde 75, quando participou da Bienal do Whitney Museum, em NY.
O "descarte" de alguns artistas muitas vezes pode parar nas mãos de quem lhes ajudou durante a mostra.
Cinthia Menutole, responsável pela montagem dos artistas do segmento Representações Nacionais da Bienal, foi uma delas.
Com o fim da exposição, ela "herdou" o trabalho apresentado pelo mexicano Carlos Aguirre. "Ainda não tenho idéia do que vou fazer com isso", diz, em frente aos despojos de "Fin de Siglo", criado com instrumentos cirúrgicos, madeira e ferro.
Por um lado, a pista de gelo do dinamarquês Olafur Eliasson foi destruída e derretida, os polvilhos, pãezinhos e abóboras do paraguaio Cecílio Thompson "viraram abóbora" dentro do lixo e os cartazes com que Arnaldo Antunes cobriu uma parede do terceiro andar já esfarelaram. Por outro, voltam intactos para as suas galerias os móveis silenciosos da colombiana Dóris Salcedo, as perturbadoras imagens da australiana Tracey Moffatt e o carro aquilino do mexicano Gabriel Orozco.
Nem tudo o que é contemporâneo desmancha no ar.



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