São Paulo, sábado, 19 de dezembro de 1998

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Memórias da violência (final)

ALBERTO DINES

Colunista da Folha
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História instantânea, tipo nescafé, é armadilha. Diabólica sedução para o historiador e o jornalista. A arqueologia dos eventos, como as demais, faz-se com diligência e calma, por camadas, obedecendo à mesma lógica do soterramento. Cortes transversais são ilusórios, aparência de flagrante, não resistem à própria ação do tempo. Tentações autoritárias, tal como a historiografia stalinista, errática e fulminante, fazendo e desfazendo personagens e situações. História e vida são igualmente intermináveis. Fiam-se e desfiam-se devagar. Musa e ícone, Penelope, é a tecelã do entendimento. Também da reconciliação.
O AI-5 foi bem rememorado pela imprensa. Uma das razões é que em 1968, ao contrário de 1964, foi vítima. A primeira vítima, para que as demais violências pudessem se processar em silêncio. A efeméride produziu um salutar reencontro com o passado e com modelos de jornalismo já esquecidos. Mas não se pode pretender que a fatura esteja liquidada. Há muita coisa para desenterrar e examinar, porque o pleno entendimento daquele golpe dentro do golpe implica uma revisão mais profunda das preliminares no período 63-64.
Stefan Zweig desenvolveu a metáfora da "História como Poeta" (ou autora, "Geshichte als Dichterin"), tantas as suas caprichosas arrumações e a sua inesgotável generosidade em oferecer complementos. Os 30 anos do AI-5 enroscam-se no cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, comemorados com a sensacional reviravolta no drama chileno graças à prisão e à ameaça de extradição do general Augusto Pinochet em Londres. Qualquer que seja o desfecho do processo, o Chile não será mais o mesmo: o processo de reconstrução democrática terá de encarar o barril de lembranças agora destampado.
Menos visível é o que se passa na Argentina com a prisão do almirante Emílio Massera pelo sequestro de recém-nascidos durante a ditadura militar: a Marinha, profundamente católica e antiaborto, poupava as presas grávidas até o parto, quando, então, as liquidava sumariamente. Os filhos eram entregues a casais do círculo militar para serem criados como se fossem seus. Assassinato da alma, segundo os psicanalistas portenhos que, 20 anos depois, acabam de identificar um destes órfãos duplos (perderam os pais verdadeiros e os postiços).
A rápida visita ao Brasil do ex-golpista, ex-tenente-coronel pára-quedista e agora presidente eleito da Venezuela, Hugo Chavez, fez esquecer suas ameaças eleitorais de "fritar" a cabeça dos oponentes, dissolver o Congresso e o Judiciário. Agora, um grupo de intelectuais e políticos argentinos deixa escapar a velha fascinação pelo caudilhismo autoritário: "Identificamo-nos com cada movimento dos povos. Hoje, a Venezuela se encontra num desses momentos em que se pode produzir a quebra da hegemonia neoliberal. Diante da campanha de mentiras e infâmias vemo-nos na obrigação de não permanecer alheios...". ("Página/12", Buenos Aires, 7/ 12/98, 1ª pág.).
Perigosa recaída num país onde as esquerdas resolveram passar por cima do passado nazista de Juan Perón e acabaram produzindo o "fenômeno" Menem. Arriscada simplificação em que o neoliberalismo econômico é propositadamente misturado ao liberalismo político com evidente menosprezo pelos compromissos democráticos. Nesta hora em que se revisam história e historiografia, seria conveniente passar a limpo também a semântica das passeatas dos anos 60 e algumas das concepções herdadas. As guardiãs do Estado de Direito e do liberalismo político são hoje as esquerdas, não a direita. A luta política só se trava onde existe liberdade política. Os que não apostam na democracia são, invariavelmente, os primeiros a cair. O que nos leva a um interessante documento produzido nesta temporada de lembranças: o depoimento do general Otávio Costa ("Gazeta Mercantil", caderno "Fim de Semana", 11/12/98, pág. 4). Castelista, febiano (lutou com a FEB na Itália), historiador militar, sólida formação intelectual. Devo-lhe o ato de coragem e solidariedade de visitar- me formalmente na qualidade de comandante do Forte do Leme, no cárcere improvisado de um quartel da Vila Militar, no Rio, para onde fui sequestrado e, graças a isso, mudaram radicalmente as condições em que me encontrava. O general faz interessantes avaliações, inclusive sobre o dramático encontro do marechal Costa e Silva com as lideranças estudantis logo depois da Passeata dos Cem Mil. Contrariando o núcleo da linha dura que o rodeava, o presidente acedeu em receber o pequeno grupo. "Foi encurralado e agredido verbalmente pelos estudantes... Perdeu autoridade junto aos companheiros. Os estudantes acharam que tinham vencido a guerra. O regime se fechou ainda mais... Se tivesse havido mais compreensão por parte da delegação que acompanhou os estudantes, a situação teria tomado outro rumo..."
Franklin Martins (um dos líderes estudantis presentes ao encontro, hoje jornalista) não concorda. Contou-me que os estudantes foram altivos apenas, "nenhuma das partes queria ceder". Acrescenta Martins: se Costa e Silva tivesse concordado pelo menos com a reabertura do restaurante do Calabouço (uma das quatro condições dos estudantes), teria desarmado as manifestações seguintes (Zuenir Ventura, em "1968, o Ano Que Não Terminou", detalha o episódio).
História não se escreve no condicional. Assim como as versões não coincidem no relato do fato, também as disposições dos personagens nada tinham de convergentes. Certa era a determinação do grupo da linha-dura de produzir pretextos para agudizar a situação (como o fez em seguida a partir do discurso do deputado Márcio Moreira Alves na Câmara Federal ).
Importante consignar -daí a lembrança- que o confronto político deve prever, em algum momento, o diálogo. Não apenas no âmbito da urbanidade, mas na percepção do que se pretende alcançar.
José Saramago, ao receber em Estocolmo o Nobel de Literatura na noite de 10 de dezembro, demonstrou como é possível combinar a firmeza de convicções à grandeza da alma. Intrinsecamente antiburguês, lá estava ele, no entanto, envergando impecável casaca e condecorações. Elegante e eloquente, aproveitou os 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos (que transcorria naquele dia) para se pronunciar em favor da humanidade e do humanismo. Produziu um manifesto que mesmo seus adversários políticos endossariam plenamente. Com um hino à vida, fez política, literatura, história.
Trinta anos depois do AI-5 percebe-se no país um benfazejo clima de aproximação. Vozes menos tensas, ânimos menos eriçados, ouvidos mais atentos -é, talvez, a mais promissora alternativa à ferocidade já aparecida desde a morte de Tancredo Neves. Tênue luz, melhor homenagem não se poderia prestar ao fim das trevas.


Este colunista, de férias, voltará em 23 de janeiro.





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