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Memórias da violência (final)
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
²
História instantânea, tipo
nescafé, é armadilha. Diabólica
sedução para o historiador e o
jornalista. A arqueologia dos
eventos, como as demais, faz-se
com diligência e calma, por camadas, obedecendo à mesma
lógica do soterramento. Cortes
transversais são ilusórios, aparência de flagrante, não resistem à própria ação do tempo.
Tentações autoritárias, tal como a historiografia stalinista,
errática e fulminante, fazendo e
desfazendo personagens e situações. História e vida são
igualmente intermináveis.
Fiam-se e desfiam-se devagar.
Musa e ícone, Penelope, é a tecelã do entendimento. Também
da reconciliação.
O AI-5 foi bem rememorado
pela imprensa. Uma das razões
é que em 1968, ao contrário de
1964, foi vítima. A primeira vítima, para que as demais violências pudessem se processar em
silêncio. A efeméride produziu
um salutar reencontro com o
passado e com modelos de jornalismo já esquecidos. Mas não
se pode pretender que a fatura
esteja liquidada. Há muita coisa para desenterrar e examinar,
porque o pleno entendimento
daquele golpe dentro do golpe
implica uma revisão mais profunda das preliminares no período 63-64.
Stefan Zweig desenvolveu a
metáfora da "História como
Poeta" (ou autora, "Geshichte
als Dichterin"), tantas as suas
caprichosas arrumações e a sua
inesgotável generosidade em
oferecer complementos. Os 30
anos do AI-5 enroscam-se no
cinquentenário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, comemorados com a sensacional reviravolta no drama
chileno graças à prisão e à
ameaça de extradição do general Augusto Pinochet em Londres. Qualquer que seja o desfecho do processo, o Chile não será mais o mesmo: o processo de
reconstrução democrática terá
de encarar o barril de lembranças agora destampado.
Menos visível é o que se passa
na Argentina com a prisão do
almirante Emílio Massera pelo
sequestro de recém-nascidos
durante a ditadura militar: a
Marinha, profundamente católica e antiaborto, poupava as
presas grávidas até o parto,
quando, então, as liquidava sumariamente. Os filhos eram entregues a casais do círculo militar para serem criados como se
fossem seus. Assassinato da alma, segundo os psicanalistas
portenhos que, 20 anos depois,
acabam de identificar um destes órfãos duplos (perderam os
pais verdadeiros e os postiços).
A rápida visita ao Brasil do
ex-golpista, ex-tenente-coronel
pára-quedista e agora presidente eleito da Venezuela, Hugo
Chavez, fez esquecer suas
ameaças eleitorais de "fritar" a
cabeça dos oponentes, dissolver
o Congresso e o Judiciário. Agora, um grupo de intelectuais e
políticos argentinos deixa escapar a velha fascinação pelo caudilhismo autoritário: "Identificamo-nos com cada movimento
dos povos. Hoje, a Venezuela se
encontra num desses momentos
em que se pode produzir a quebra da hegemonia neoliberal.
Diante da campanha de mentiras e infâmias vemo-nos na
obrigação de não permanecer
alheios...". ("Página/12", Buenos Aires, 7/ 12/98, 1ª pág.).
Perigosa recaída num país onde as esquerdas resolveram passar por cima do passado nazista
de Juan Perón e acabaram produzindo o "fenômeno" Menem.
Arriscada simplificação em que
o neoliberalismo econômico é
propositadamente misturado
ao liberalismo político com evidente menosprezo pelos compromissos democráticos. Nesta
hora em que se revisam história
e historiografia, seria conveniente passar a limpo também a
semântica das passeatas dos
anos 60 e algumas das concepções herdadas. As guardiãs do
Estado de Direito e do liberalismo político são hoje as esquerdas, não a direita. A luta política só se trava onde existe liberdade política. Os que não apostam na democracia são, invariavelmente, os primeiros a
cair. O que nos leva a um interessante documento produzido
nesta temporada de lembranças: o depoimento do general
Otávio Costa ("Gazeta Mercantil", caderno "Fim de Semana",
11/12/98, pág. 4). Castelista, febiano (lutou com a FEB na Itália), historiador militar, sólida
formação intelectual. Devo-lhe
o ato de coragem e solidariedade de visitar- me formalmente
na qualidade de comandante
do Forte do Leme, no cárcere
improvisado de um quartel da
Vila Militar, no Rio, para onde
fui sequestrado e, graças a isso,
mudaram radicalmente as condições em que me encontrava. O
general faz interessantes avaliações, inclusive sobre o dramático encontro do marechal
Costa e Silva com as lideranças
estudantis logo depois da Passeata dos Cem Mil. Contrariando o núcleo da linha dura que o
rodeava, o presidente acedeu
em receber o pequeno grupo.
"Foi encurralado e agredido
verbalmente pelos estudantes...
Perdeu autoridade junto aos
companheiros. Os estudantes
acharam que tinham vencido a
guerra. O regime se fechou ainda mais... Se tivesse havido
mais compreensão por parte da
delegação que acompanhou os
estudantes, a situação teria tomado outro rumo..."
Franklin Martins (um dos líderes estudantis presentes ao
encontro, hoje jornalista) não
concorda. Contou-me que os estudantes foram altivos apenas,
"nenhuma das partes queria ceder". Acrescenta Martins: se
Costa e Silva tivesse concordado
pelo menos com a reabertura do
restaurante do Calabouço
(uma das quatro condições dos
estudantes), teria desarmado as
manifestações seguintes (Zuenir Ventura, em "1968, o Ano
Que Não Terminou", detalha o
episódio).
História não se escreve no
condicional. Assim como as versões não coincidem no relato do
fato, também as disposições dos
personagens nada tinham de
convergentes. Certa era a determinação do grupo da linha-dura de produzir pretextos para
agudizar a situação (como o fez
em seguida a partir do discurso
do deputado Márcio Moreira
Alves na Câmara Federal ).
Importante consignar -daí a
lembrança- que o confronto
político deve prever, em algum
momento, o diálogo. Não apenas no âmbito da urbanidade,
mas na percepção do que se pretende alcançar.
José Saramago, ao receber em
Estocolmo o Nobel de Literatura na noite de 10 de dezembro,
demonstrou como é possível
combinar a firmeza de convicções à grandeza da alma. Intrinsecamente antiburguês, lá
estava ele, no entanto, envergando impecável casaca e condecorações. Elegante e eloquente, aproveitou os 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos
(que transcorria naquele dia)
para se pronunciar em favor da
humanidade e do humanismo.
Produziu um manifesto que
mesmo seus adversários políticos endossariam plenamente.
Com um hino à vida, fez política, literatura, história.
Trinta anos depois do AI-5
percebe-se no país um benfazejo
clima de aproximação. Vozes
menos tensas, ânimos menos
eriçados, ouvidos mais atentos
-é, talvez, a mais promissora
alternativa à ferocidade já aparecida desde a morte de Tancredo Neves. Tênue luz, melhor homenagem não se poderia prestar ao fim das trevas.
Este colunista, de férias, voltará
em 23 de janeiro.
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