São Paulo, Quinta-feira, 20 de Janeiro de 2000


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LITERATURA
Em "Vida, O Filme" , Neal Gabler explica por que o entretenimento é mais poderoso que os "ismos""
"Realidade americana é Disneylândia"

MARCELO NETTO RODRIGUES
da Redação


Não se espante; ao ler este texto você está sendo filmado. Quanto menos espontâneo for, melhor, suas chances de estrelar o papel principal aumentam.
Em "Vida, o Filme", livro do crítico cultural norte-americano, Neal Gabler, somos atores e platéia ao mesmo tempo em busca de reconhecimento. O espetáculo é ininterrupto. "Não precisamos mais sair do conforto do cinema (...) aprendemos como escapar da vida para a vida."
Esqueça (ou lembre-se de) Truman, Huxley e Orwell, o imaginário já é realidade, ou como Gabler define: pós-realidade.
O livro só não busca responder àquela pergunta estampada no broche de um dos personagens de "O Show de Truman": "Aonde isso vai dar?".
Leia abaixo a entrevista que Neal Gabler concedeu à Folha, por telefone, de Nova York, em que ele responde por que não vê a sociedade de entretenimento como um câncer.

Folha - O ícone da pós-modernidade para Aldous Huxley, em "Admirável Mundo Novo" é representado por "Our Ford" (corruptela para "Our Lord" -nosso senhor). Qual é o ícone principal da pós-realidade?
Neal Gabler -
Eu acho que Huxley estava errado ao acreditar que o desejo pelo prazer seria coercivo. Não vejo o desejo sendo gerado de cima, mas por nós. Huxley procurava localizar essa idéia em uma única coisa, eu não acho que ele percebeu que o mundo se transformaria num amplo ícone da pós-realidade.

Folha - Você escreve que "não se trata de nenhum "ismo", mas talvez o entretenimento seja a força mais poderosa e inelutável de nosso tempo- uma força tão esmagadora que acabou produzindo uma metástase, virando a própria vida". Por que ele não é patológico?
Gabler -
Pelo menos ele não é apenas um câncer. Usei o termo (metástase) como um processo descritivo. Dizer que pessoas à procura de prazer por meio do entretenimento estão sendo iludidas é um julgamento de valor.

Folha - Na sua visão, Marx e Schumpeter parecem ter errado, creditando aos "ismos", o caráter que o entretenimento assume hoje. Ele em si não seria um filho rebelde, mas dependente desses "ismos"?
Gabler -
Não, acredito que o inverso seja verdadeiro. Críticos de esquerda o vêem como uma ferramenta do capitalismo para controle social. Empiricamente isso não é verdade.

Folha - Você cita uma análise do semiólogo italiano Umberto Eco de que "temos de começar de novo do começo". Seria esse o apregoado por Marx tendo o comunismo como começo e não como fim, em contraposição ao capitalismo atual?
Gabler -
Acho que não. Pessoas têm demandas e querem certas coisas. Agora, alguém pode dizer que foram criadas pelo capitalismo. Na minha avaliação, Marx (em pensamento, distinguindo-o de um pensamento marxista) sempre subestimou o sentimento das pessoas. Um de seus maiores enganos foi insistir em falar como elas realmente se sentiam, como se dissesse: "Você pensa que é feliz, mas eu sei melhor do que você; você não é realmente feliz". Eu tenho mais confiança e respeito pelo cidadão comum que diz: "Olhe, eu sei exatamente o que eu quero". Você acha que as pessoas em Hollywood dizem: "Vamos pôr isto "goela abaixo" deles, nós temos uma ideologia burguesa e...". Não. Elas dizem: "O que as pessoas querem?" O sistema capitalista baseia-se agora na satisfação das minhas necessidades.

Folha - O sociólogo norte-americano Talcott Parsons define papéis para atores de uma sociedade distinta. A "cultura do lixo" norte-americana (como você define) ultrapassa esses limites, quais serão suas consequências num futuro próximo?
Gabler -
O que você descreve é o lado patológico desse processo esmagador, que virtualmente invade toda a vida norte-americana e que em uma década invadirá todos os cantos do mundo. Meu editor na Alemanha disse que qualquer coisa que aconteça nos Estados Unidos, acontece lá também cinco anos após. Se o objetivo é ser observado e reconhecido por uma platéia, todas as sortes de coisas são permitidas, algumas horríveis, outras mais sutis.


"Todos sabemos quem Zsa Zsa é, apesar de não sabermos o que ela faz"

Folha - A mídia cumpre sua função trazendo à tona assuntos particulares de políticos? No Brasil, a atenção dispensada à existência de filhos bastardos também é recorrente...
Gabler -
Vocês também têm isso (risos)? Aqui muitos dizem que os políticos vendem suas histórias de vida familiar à mídia, portanto a mídia estaria autorizada a investigá-la. Com relação ao caso Lewinsky, o caso era apenas sobre sexo e entretenimento. Clinton não sofreu impeachment porque o público americano disse: "Isso é engraçado, mas não revela como se governa um país".

Folha - O fator Zsa Zsa (pronuncia-se "já já") -referente ao nome de uma húngara que se notabilizou nos EUA por não saber fazer nada (dançar, cantar, atuar) mas mesmo assim tornou-se uma celebridade- tende a se espalhar ou diminuir?
Gabler -
Todos sabemos quem Zsa Zsa é (sic), apesar de não sabermos o que ela faz. Elas estão por toda a parte.

Folha - Numa crítica sobre o seu livro lê-se: "Nós não queremos que a Disneylândia seja igual à realidade, mas que a realidade seja mais como Disneylândia". Seria essa a razão para que o garoto cubano (Elián González) ter sido levado para lá?
Gabler -
De fato, a realidade americana é muito parecida com a Disneylândia. Fazemos o possível para que a realidade seja assim. Vivemos numa sociedade que tem tanta artificialidade, que essa acaba se transformando em realidade. Essa é a natureza da vida americana: deixou a fantasia de lado e se incorporou em nossa existência diária. Política, religião e educação tendem a assumir o papel de entretenimento.

Folha - Seria uma ironia que na capa da edição brasileira do livro, a frase "estrelando todo mundo" (que consta na versão em inglês) foi suprimida, ou aos coadjuvantes do Terceiro Mundo não se reserva tal crédito?
Gabler -
Acredito que todos sejam protagonistas. Talvez, existam bolsões de resistência, mas esses terão de se retirar do sistema na busca por autenticidade.

Folha - Um leitor de Dallas comenta que o livro retrata 99% dos americanos como idiotas.
Gabler -
Isso porque as pessoas lêem o livro com seus próprios sentimentos, e não com os meus. O livro é neutro intencionalmente. Eu não digo se o entretenimento é bom ou ruim.


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