São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"VIDA: UMA BIOGRAFIA NÃO-AUTORIZADA"

O modo de pensar dos cientistas

JESUS DE PAULA ASSIS

ESPECIAL PARA A FOLHA

Quatro e meio bilhões de segundos formam, aproximadamente, 143 anos, o dobro de uma vida.
Essa comparação talvez dê uma idéia inicial de o quanto se distanciam do senso comum afirmações como "as bactérias surgiram há 3,5 bilhões de anos, um bilhão depois da formação da Terra". O livro de Richard Fortey usa essas cifras em quase todas as páginas, o que exige do autor uma tarefa adicional: além de explicar as reviravoltas que acontecem na matéria viva, deve tornar minimamente familiares esses períodos tão extensos. E, mesmo sem a ajuda de fotos ou ilustrações, sai-se bem do problema.
Descrever o desenvolvimento da vida na Terra, fazer uma "biografia" seria uma tarefa relativamente mais simples se os registros fósseis ajudassem. Quem pensa nos investigadores dessa história sempre tem em mente os dinossauros, os grandes monstros desaparecidos há 65 milhões de anos. Mas isso, em termos de um período de 3,5 bilhões de anos, é quase ontem. E daí para trás?
O fato é que quanto mais se recua no tempo, mais difícil vai ficando achar fósseis.
Primeiro porque eles vão ficando menores e mais frágeis (os primeiros seres vivos eram bactérias; em seguida, pequenas algas etc., todos de difícil preservação).
Depois porque a superfície terrestre vai sofrendo transformações, e as camadas de pedra que envolvem os restos de animais e de plantas vão sendo revolvidas pelos movimentos tectônicos, escondidas sob geleiras etc.
E, como lembra o autor, "os rios de Gales e os glaciares da Groen- lândia abrem seu caminho sob o comando dos elementos, não para satisfazer os cientistas" (pág. 180), ou seja, o paleontólogo está à mercê de um favor da natureza, que resolve de vez em quando desenterrar um fóssil importante.
Mais que um novo livro (mais um) sobre a história da vida na Terra, este é um livro sobre os cientistas e seus modos particulares de pensar.
Fósseis são desenterrados e guardados nas gavetas dos museus e institutos de pesquisa. Alguns são imediatamente classificados (isto é, seu lugar na história está supostamente bem determinado). Outros esperam. Mas, a cada vez que uma nova peça é encaixada, todas as outras precisam ser revistas, e a história, remontada. É uma tarefa que transcende a questão puramente biológica e avança para outras, sobre quais os limites do conhecimento que pode ser obtido pelo método científico.
Se é complicado trabalhar com poucas evidências desencavadas aqui e ali, mais complicado ainda é entendê-las. Não é que os fósseis mais antigos sejam apenas pequenos, frágeis e raros. É muito difícil dizer o que são, interpretá-los.
Uma coisa é ir montando um quebra-cabeças pouco a pouco, com peças achadas em toda a superfície terrestre. Outra é tentar executar essa montagem tendo apenas uma idéia remota de o que seria o resultado final. Assim, cada nova peça encontrada não só adiciona uma solução a um ponto do quebra-cabeça como cria um novo problema, pois frequentemente exige a reconfiguração do quadro geral.
Tudo isso poderia ser contado com descrições de fósseis, classificações, árvores genealógicas e uma pitada de filosofia amadora, tão frequente em livros de divulgação. Fortey escapa dessa armadilha. Seu texto devolve à ciência aquela dimensão de aventura ausente dos textos primários (aqueles que os cientistas escrevem para si próprios) e exagerada nos textos jornalísticos de divulgação.
Se é que a vida tem uma história coesa -coisa de que os isolados criacionistas duvidam-, Fortey mostra não só como ela seria, mas também os limites dentro dos quais poderia ser contada. Para quem quer ver a trama elucidada, o livro pode ser um pouco decepcionante. É um texto para quem sempre considera mais interessante o caminho que a chegada.


Vida: Uma Biografia Não-Autorizada
Life: An Unauthorized Biography
    
Autor: Richard Fortey
Tradutor: Jorge Calife
Editora: Record
Quanto: R$ 40 (392 págs.)





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